Jean Charles e o fracasso inglês

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Dois anos após o assassinato de Jean Charles, o cenário permanece o mesmo. Os atiradores foram inocentados e ao chefe da unidade antiterrorismo da polícia londrina coube apenas uma repreensão. Entre as milícias organizadas que atuam nas favelas do Rio e as instituições inglesas que arbitram decisões semelhantes há um diferença de grau — não de natureza. Ouso dizer que a segunda é ainda mais nefasta que a primeira, posto que encobre sobre véu de institucionalidade, determinações convenientes que desfiguram os princípios mais rudimentares de um Estado de Direito.

Tomemos por verdadeiras as afirmações de que Jean Charles vestia um casaco em pleno verão e que correu ao ser abordado pela polícia. Consideremos ainda a condição na qual esse caso se desenrolou: dias após o atentado terrorista à capital inglesa. Tais fatores são suficientes para justificar sete tiros na cabeça de um suspeito? Se por acaso os policiais tivessem acertado um terrorista, seriam, a essa altura, heróis. Não porque identificaram empiricamente práticas terroristas, ou porque a inteligência da polícia inglesa mostrou sua eficácia, mas pelo simples fato de terem, por sorte, conseguido neutralizar um ataque terrorista. Os policiais assumiram a responsabilidade por suas atitudes ao atirar no suspeito baseado na crença de que seu comportamento assinalava intenções terroristas. (i) Ele poderia ser um imigrante ilegal com medo de ser deportado (ii) um ladrão foragido (iii) um estuprador (iv) um paranóico (v) de fato, um terrorista (vi) — quantas coisas mais poderíamos elencar? Porque, dentre tantas possibilidades, escolher aquela que o classifica como terrorista? Porque a escolha era inevitável, alguém responderia. Certo. Mas baseado no quê escolheram essa alternativa e não outra? O recente ataque não dissolve a dúvida entre as opções anteriores, apenas atenua a conduta de quem escolheu a opção errada. Se escolha é inevitável, nem por isso podemos deixar de exigir responsabilidade por parte de quem decidiu por ela. Em algum momento, alguém decidiu classificar Jean Charles não como ladrão, imigrante ilegal, estuprador, paranóico, mas como terrorista, e por isso ele pagou com a vida.

Eu admito que as condições servem de atenuantes, mas não podem eximir de responsabilidade aqueles que praticaram uma ação que causou a morte de um inocente. Essa isenção tem efeito reverso. Torna Jean Charles culpado por ter nascido em terras tropicais e sentir frio mesmo sob o calor do verão inglês; ou por ser parecido com um terrorista; qualquer que seja motivo que disparou a atenção dos policiais ingleses não foi suficiente para fornecer o discernimento necessário para garantir uma classificação segura da natureza do comportamento do suspeito, por isso eles são culpados por terem agido segundo crenças certamente influenciadas pelos eventos recentes. Decidir entre qualquer uma das alternativas supracitadas, entre qualquer uma das classificações acima, é antes uma questão de vontade, uma decisão alheia às circunstância externa.

Consideremos uma hipótese: se eu moro ao lado de um presídio de onde fugiram muitos presos durante o dia e se a noite um vulto adentra minha casa e eu, sozinho e amedrontado, empunhando a arma de meu pai, disparo dois tiros, sou por acaso inocente de ter ferido ou matado meu irmão pois as circunstâncias me incutiam um medo real e provável? Se não estava ao meu alcance, naquelas condições, discernir se se tratava de um assaltante ou de meu irmão, a decisão de atirar se reporta exclusivamente aos meus interesses e, portanto, a minha responsabilidade.

A idéia de que o medo pode justificar a violação de direitos humanos e pretextar atos de brutalidade é extremamente nociva e põe em causa a estrutura do Estado moderno. O direito individual, átomo que constitui o corpo de um Estado liberal, está ameaçado. Até onde, em nome da segurança pública (medo institucionalizado), permitiremos que nos despojem dos nossos direitos individuais? Ora, essa é uma pergunta retórica, se a morte já foi consumada, não há mais limites para o que se pode fazer! O que virá adiante, tortura? E o que se seguirá ao medo, como justificativa para burlar os direitos do homem? Que deplorável precedente contemporizamos.

O homem é mesmo um canalha, acostuma-se a tudo, diria Dostoiévski.

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