O outro

O

Inês – Que é que você tem aí no rosto, embaixo? Essa mancha vermelha…
Estelle – (Num sobressalto): Mancha vermelha? Que horror! Onde?
Inês – Aqui. Aqui. Eu sou o espelho que atrai as cotovias, minha pequena cotovia, pilhei-a! Não há vermelhidão alguma! Nem sinal, hein? Que tal se o espelho começasse a mentir? Ou se fechasse os olhos, se não quisesse olhar, que faria você de toda essa beleza? Não tenha medo! Preciso olhar para você. Meus olhos ficarão sempre abertos… sempre abertos… e eu serei boazinha.

in Entre quatro paredes, Sartre

Que é isto capaz de fazer um despretensioso andar-nu-pela-casa rebentar num rubor inconsolável? O olhar alheio! Tantos refletiram sobre a alteridade em busca de uma norma que pudesse dizer um quê sobre a enigmática influência que ela exerce sobre nós. O certo é que combinado à sociabilidade, a ausência de uma imagem nítida de si mesmo deposita no noutro a esperança de realizar o desejo narcísico de contemplar a própria face. Mas este espelho que é a face do outro cobra caro seus serviços e a literatura é um espaço que documenta um sem número de experiências e imagens reveladoras e emblemáticas, no que concerne à correlação eu-outro.

Volto a recomendação literária mais tarde, por ora relato brevemente o que me levou a considerar o tema: acredito que seja possível estabelecer relações de grau entre as coisas humanas, este estabelecimento liga-se a uma estrutura funcional que considere objetivamente os critérios de distinção (portanto aborte anomalias como o nazismo), normalmente a uma hierarquia meritocrática que disponha uma ordem, meramente formal, de atribuições relativas ao desempenho ou qualidades objetivos. Assim ocorre nas empresas, uma hierarquia determina funções inferiores e superiores que se ajustam através de um plano de carreira ou de um sistema de avaliação que aponte aqueles que estão aptos a cumprir uma atividade. Contudo pouco mais de um passo separa uma forte cultura acalentada por um senso estético e intelectual de uma tentativa de legitimação de um discurso de superioridade racial. Não estou dizendo que o nazismo como acontecimento histórico está restrito a este limitado quadro de justificação, mas sem dúvida é pelo irresponsável avanço da pretensa objetividade histórica — que concede valor às coisas segundo critérios que não se podem assemelhar aos de uma avaliação que arbitrariamente escolhe suas perguntas e respostas, numa proposição estritamente objetiva, como acontece nas seleção das empresas — à antropologia perversa que, ao nível do indíviduo, chega-se à superioridade. Os regimes totalitaristas nunca se realizam de cima para baixo, do Estado ao povo, mas antes do consentimento ou omissão do povo à legitimidade do governo. Bem, tantas voltas pra mostrar como é fácil confundir a objetividade artificial de categorias que se diferenciam para auxiliar a manipulação de um determinado objetivo com a naturalização das categorias e das prerrogativas a ela investidas para justificação de um sistema de valores. Um exemplo corrente: O chefe, uma categoria comum à hierarquia das empresas, tem poderes e vantagens capazes de configurar a produção de acordo com sua competência, pode, portanto, exigir que um funcionário faça uma coisa ou outra de acordo com sua necessidade (claro, respeitando as prescrições do contrato celebrando com o funcionário), mas quando o direito estabelecido no espaço privado e a distinção e o poder restritos a ele ultrapassa este limite, em geral configura-se um assédio moral. Valendo-se da força que representa, o chefe exige o cumprimento de uma exigência que excede os limites do vínculo trabalhista. Voltamos ao início: esta relação abusiva conserva-se invariavelmente mediante a incorporação da indistinta imagem do outro. Acredito, e esta é apenas uma tese minha, que a ostensividade do aprendizado da linguagem exige que os distinções aconteçam por intermédio da maturidade emocional e intelectual. Por exemplo, o reconhecimento da autoridade do pai é ostensivamente estabelecido para a criança. Ninguém diz à criança: seu pai é um homem mais velho e você com 2 anos sabe pouco da vida, portanto para manter sua segurança e garantir seu desenvolvimento respeite tudo que ele disser e o obedeça incondicionalmente. Não, o pai é obedecido porque é pai. O poder e o direito confundem-se na impossibilidade da elaboração discursiva esclarecedora. Assim, de uma imagem à outra seguimos a regra da ostensividade, incorporando o método e omitindo a pergunta pelo direito ao poder, à distinção, ao destaque, à diferença. Quando a questão da diferença, do grau, exime-se de justificação discursiva, toma forma um terreno movediço para a alteridade.

Eu não queria ter usado tantos conceitos filosóficos — mas alguns temas estavam ainda muito presentes na minha cabeça para serem esquecidos — sobretudo porque a fonta de tudo isto foi episódio pessoal, foi a insegurança que senti e que me abateu diante da reminiscência de algo que eu imaginei extinto: esta ignorância quanto ao direito à diferença que me leva/levou a temer a censura pública, desejar a aprovação alheia, como alguém que é flagrado pelo vizinho andando nu em sua própria casa. Os ardis empregados, mecanicamente, porque tudo isso está instalado numa mecânica psicológica para desencargo do ego, são ainda mais humilhante. A impressão que tenho é que quando empregamos algum meio para obter a aprovação do outro e portanto evitar que ele exerça seu poder é quase sempre através um método antiquado, dentre outros que, por pudor, nem ouso revelar.
De forma genial Sartre desenvolveu a imagem destas relações numa mais-que-adequada alegoria de um inferno, “o inferno que é outro”. O eterno olhar do outro a nos capturar inesperadamente nus dançando na varanda, o eterno ruborizar, bajular, suportar, admirar, invejar..

Segue o texto abaixo, completo, numa bela tradução de Guilherme de Almeida.

Entre quatro paredes — Sartre

Off-topic: segue também, a título de recomendação, o primoroso texto de La Boétie, o Discurso da servidão voluntária.

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