O restabelecimento da experiência trágica, conforme tratei no post anterior, está em íntima relação com a proposta de retormar uma disposição que articule razão e instinto. Assimilar um quinhão de inebriedade, de loucura, não é só tarefa, mas o próprio modo de ser de quem quer viver no limite pleno da experiência humana — assim professava Nietzsche. Foi justamente esta porção que me faltou hoje e por isto eu me sinto mal. Talvez seja preciso perder a cabeça, às vezes só um gesto instintivo pode dar o tom justo a uma indignação.
A razão pela qual digo isto vocês entendarão agora:
Eu fui até a escola de minha prima, buscá-la, e ao voltar deparo com o seguinte cenário: um carro estacionado SOBRE uma praça, abaixo de uma árvore, crianças brincando de arremessar amêndoas buscando derrubar outras — travessura comum de criança. Logo que passei pelo carro o dono encostou no grupo de meninos que estavam brincando e falou, prestem atenção:
— Não importa de quem vocês sejam irmãos, se uma amêndoa cair sobre o meu carro eu dou um murro na cara de um de vocês!
Sem nenhum acréscimo, estas foram as palavras de um almofadinha bem vestido, dono de um Pálio prata estacionado sobre uma praça na Boca do rio, para um grupo de pouco mais de 4 crianças. Minha indignação pela sua atitude só foi menor que o sentimento de ojeriza que eu senti de mim mesmo por não ter dado um soco na cara dele, sem titubear. É reduzido ao vazio qualquer grau de cultura que contemporize com absurdos desta ordem. Diante de tudo que penso sobre mim, sobre a função que exercem os dispositivos que conscientemente aprimoro e sobre meus valores, as palavras que balbuciei naquele momento foram mais do que insuficientes, foram traiçoeiras. Uma traição que me comprometo publicamente a NUNCA mais deixar se repetir.
Curioso é que momentos antes eu pregava o sermão habitual que faço no percurso do colégio à casa, para minha prima, que tinha como tópico a necessidade da leitura, em contraposição ao terrível vício incrustado em sua vida de desligar-se em frente a TV. Logo depois eu disse: “É por isto que devemos ler, emancipar, desenvolver, para que possamos ao menos nos indignar quando alguém diz que vai dar um soco na cara de uma criança. Porque se nós formos indiferentes a isto, seremos muito piores que cachorros“.
Talvez o meu desejo frustado seja censurável. Tanto melhor! Eu nunca me filiei à idéia de que a razão fosse a exclusiva soberana sobre as ações humanas, ao contrário, agora o que me esmaga é exatamente o sentimento frio de ter agido controladamente numa situação que exigia todo o sangue de minhas veias.
Uma fórmula oportuna de Quincas Borba:
Todo conhecimento do mundo não vale um par de botas usadas
Certas coisas provocam em mim reações viscerais. Não saberia descrever o contorcer incessante que se produz dentro de mim quando me deparo, por exemplo, com uma situação como esta que você descreveu. Eu não teria dado um soco nesse ser grotesco em questão (olhe o meu tamanho!!), mas certamente não conseguiria ficar calada. Nunca consigo!
Já passei por situações semelhantes, e sempre “parti para cima” em defesa da vítima fosse ela uma criança, um animal, ou qualquer criatura que estivesse sendo injustiçada e em “desvantagem”.
Um dia desses, receio, alguém pode até revidar… Mas calada eu não fico.