A erosão da propriedade privada

Quero escrever sobre um dos meus delírios, uma das minhas ingenuidades — ingenuidades são o meu forte. Creio que foram lançadas as sementes daquilo que um dia talvez ajude a erodir o firme edifício da propriedade privada. Não é fácil enxergar essa possibilidade porque, além de longínqua e etérea, ela determinará uma mudança radical que dificilmente se deixará reduzir a eventos. A revolução francesa talvez tenha nos acostumado a esperar que transformações radicais sejam o resultado de eventos que marcam uma inflexão histórica clara e perceptível. Somos animais históricos mas somos, antes de mais nada, animais. Animais cuja vida se distende sobre um tempo curtíssimo e que por isso não podem testemunhar as grandes transformações do mundo senão por meio da história (discurso). Portanto, não há garantias de que essas sementes mendrem e deem lugar a algo da dimensão disso que eu imagino, mas ainda assim acho que vale a pena falar sobre essas ideias.

O papel da teoria em nossa forma de vida nos acostumou a pensar que certas mudanças são determinadas ou orientadas pela transformação do nosso pensamento teórico. Assim, em certa medida, as práticas são condicionadas pelas teorias*. O pensamento, no entanto, tem muitas expressões e não se resume à teoria. Fazer-se entender sobre esse ponto é imensamente complicado, pois conhecimento e autoridade são duas palavras que andam juntas e reconhecer outras expressões de pensamento significa ser capaz de ver para além das formas institucionais de pensamento — portanto, escapar da pretensão de objetividade que a institucionalização materializa e encena. A literatura, a dança, a culinária, todo produto cultural humano é a expressão de um pensamento. O samba (e as escolas de samba), por exemplo, são expressões de um pensamento (que não valorizamos pela força do viralatismo que nos ensinam desde cedo). A pretensão de traduzir essas expressões em discursos teóricos diz muito sobre nossa forma de vida, mas é preciso reconhecer a independência disso que se quer traduzir, a despeito dessa inclinação. Digo tudo isso porque o que me faz considerar a possível erosão da propriedade não é um pensamento, mas ações e atitudes que testemunhei ao largo dos 22 anos em que estou na internet. Práticas de pessoas as mais diversas, muitas delas anônimas, que refletem valores que tem potencial profundamente transformador.

Deixem então que lhes conte algumas coisas: como uma pessoa de classe média baixa (ou simplesmente pobre, se a gente quiser simplificar), eu nunca poderia ter acesso a certos itens da chamada alta cultura. Em realidade até mesmo coisas mais acessíveis me pareciam distantes. E, no entanto, eu tive, por exemplo, uma versão flawless do Cravo bem temperado, de Bach. Cheguei a ter uma versão das obras completas de Bach. Nunca me encantou esse jogo de persnosticidade e erudição que o Paulo Francis — e tantos outros como ele — gostava de encenar. Eu nunca gostei de jogos. Mas ter acesso a itens valiosos da múltipla e diversificada cultura humana é algo de valor inestimável e transcende os jogos simbólicos e a mercantilização, por assim dizer, da cultura ou da alta cultural (coisa que pra mim não quer dizer nada, pra ser honesto). Se há muito tempo eu pude entrar em contato com tudo isso foi porque alguns seres humanos, anônimos, dispuseram do seu tempo pra fazer com que outros anônimos como eu pudessem disfrutar das maravilhas culturais humanas.

Isso talvez seja ainda muito pouco concreto. Vejamos então outro exemplo pessoal. Ninguém lê filosofia em português. Talvez um punhado de pessoas, não mais do que isso. Mas quem escreve e pesquisa filosofia em português nem por isso está submetido a critérios menos rigorosos que os escrevem em inglês, a língua universal. O dilema é: estamos submetidos aos mesmos critérios mas não temos os mesmos recursos. A biblioteca da UFBA, onde eu me formei, é precária em termos dos livros necessários à boa formação científica. Se algum medida eu consegui superar o desafio de escrever sobre filosofia com algum valor foi with a little help of my friends. Mas tanto eu como meus amigos, e como tantos pesquisadores no Brasil, nós contamos com a ajuda de pessoas espalhadas pelo mundo, pessoas imbuídas do espírito de compartilhamento e de abertura. Gente como Aaron Swartz, covardemente perseguido pelo governo americano até o ponto de se suicidar, ou Alexandra Elbakyan. Eu nunca esqueço disso!

Nossa patrona, nossa musa, Alexandra Elbakyan

A biblioteca Florestan Fernandes, da USP, tem muito mais recursos que a biblioteca da UFBA, porque além de tudo as endinheiradas agências de fomento ligadas à USP proporcionam aos seus pesquisadores dinheiro para que eles adquiram livros e esses livros, uma vez terminada a pesquisa, tem que ser entregues à biblioteca da Universidade. Isso alimenta seu acervo. Difícil pesquisar Wittgenstein sem ter acesso, por exemplo, ao trabalho de peão de Peter Hacker nos volumes do seus Analytical Commentary. Graças ao Library Genesys e outros meios mais antigos eu tive acesso a tudo isso e só precisei xerocar o último volume da coleção, que encontrei na USP. Quem usa as ferramentas que colocam o conhecimento ao alcance de todos os que tem acesso à internet pode não ter noção do trabalho que elas demandam, dos problemas gerados pela propriedade privada e pelas limitações impostas a quem não tem dinheiro. Mas eu sei bem o trabalho e o compromisso que a manutenção dessas ferramentas exige e não posso ver esse esforço senão como algo não apenas bom, mas bonito, como a expressão de valores que, ainda que se expressem timidamente por meio de poucas figuras públicas, tem uma força incrível. Uma força que eu me sinto compelido a louvar e que estimula minha imaginação e meus delírios.

Essas ideias e valores extrapolam o âmbito de minhas experiências pessoais. Todos podem constatar, no dia a dia da nossa sociedade tecnológica, como a inclinação a abrir o conhecimento num sentido muito mais amplo do que jamais sonhamos tem moldado quase imperceptivelmente a infraestrutura tecnológica da sociedade. E não apenas no trabalho incansável dos que lutam contra leis injustas e despreocupadas em favorecer aqueles que nunca são sonhados. A IBM comprou a Red Hat, a Microsoft já permite incorporar distribuições Linux ao seu sistema e dizem que em breve ele virá com um kernel Linux embutido. O Linux — como o Unix em que se baseia — são expressões de um trabalho colaborativo e voltado à comunidade humana. A tímida marca das grandes mentes que trabalharam para nos legar gratuitamente um trabalho colossal como esse quase não nos permite divisar sua importância. A história do Unix é uma história pouco contada e pouco documentada, uma amostra das dificuldades que enfrentam e enfrentarão os historiadores das tecnologias fundamentais dos nossos tempos. Dennis Ritchie e Ken Thompson criaram o que ainda hoje é a infraestrutura fundamental dos nossos sistemas operacionais, o Windows é a única exceção significativa, mas como se vê a força do *unix o compele a incorporá-lo. Android, Linux, iOS, todos tem a marca desses gênios e do esforço acumulado ao longo das décadas para desenvolver esse trabalho seminal.

Tim Berners-Lee poderia ter ganhado muito dinheiro com a web. É verdade que seu contrato como engenheiro do CERN talvez impusesse restrições e restringisse as possibilidades de ganhos a partir da pesquisa desenvolvida sobre sua alçada, mas sendo Berners-Lee um sujeito tão inteligente não era preciso que fosse um Lobo de Wallstreet para que pudesse imaginar meios de contornar essas dificuldades, se ele quisesse. Simplesmente não era o caso.

A mesma coisa poderia ser dita de Massimo Marchiori, matemático que criou o algoritmo na base do motor de buscas do Google. Eu poderia passar horas citando exemplos de pessoas anônimas ou célebres que contribuíram direta ou indiretamente para que, nas últimas décadas, pessoas de todo o mundo pudessem acessar o colossal manancial de cultura e conhecimento que a humanidade acumulou ao longo de milênios. Entretanto, impera ainda hoje mesmo no entorno ideológico e institucional onde todos nós vivemos a visão de que a competição é o motor da vida humana, aquilo que nos leva adiante e que nos estimula a ser melhores. Longe de mim transformar a dicotonomia competição/cooperação numa escolha onde só podemos eleger uma opção, mas há tempos parece que é isso o que aconteceu. Eu sinto que estou simplesmente destacando a outra parte, pouco lembrada, embora em realidade a mais importante. Certas múmias qualificam como infantilidade (a criança, o eterno símbolo da ingenuidade) a pretensão de cooperar e as aspirações coletivas, como quem pergunta: onde na história podemos encontrar apoio para essas aspirações, onde a cooperação venceu? A melhor pergunta talvez fosse em realidade: onde ela não venceu? A minguada lista que eu apresentei acima poderia ser estendida imensamente: o papel do software livre, aberto, corresponde até a 90% de todos os softwares, segundo levantamento da própria Red Hat; os repositórios de software como o Github ou o Gitlab armazenam códigos que as pessoas desenvolvem e disponibilizam pra quem quiser usar, aí se encontram desde soluções rápidas para pequenos problemas computacionais até complexos entornos de Machine Learning e Deep Learning como Keras, Tensorflow ou Sklearn.

Faltam exemplos de que somos melhores quando nos abrimos e trabalhamos para ajudar os outros? Faltam exemplos de que acreditar e apostar na inteligência dos outros, ao invés de ser tragado pelo inescapável redemoinho narcisista da competição e de seus jogos, é sumamente mais frutífero, além de ser a expressão de uma força sem portador? Michael Tomasello, primatologista (psicólogo evolutivo é realmente melhor), nos lembra que a cooperação não é apenas uma força recentemente elevada à condição de política de desenvolvimento preferível pelo mercado de software, mas o próprio eixo que nos caracteriza como homo sapiens. É trabalho cumulativo dos homo sapiens que lhes permitiram evoluir de modo assombroso, como nenhum outro animal, e criar assim o que ele chama de efeito catraca, esse dispositivo que impede que as ferramentas que criamos sejam perdidas, fazendo com que se conservem por meio da difusão do conhecimento. Os outros animais às vezes criam ferramentas e métodos engenhosos mas nem sempre conseguem fazer com que outros da sua espécie sejam capazes de utilizá-los, portanto sua evolução é vagarosa, porque submetidas a upgrades muito fortuitos. Não é o nosso caso, nós acumulamos porque colaboramos.

Espero que vocês não pensem que nada disso é um argumento, não é esse o papel do cansativo esforço para ilustrar casos. Lembrem-se de que isso não é mais que um delírio. Não sou racionalista, acredito que certas coisas só podem ser entendidas por aqueles que algum dia já pensaram as ideias que exponho aqui, ideias tão velhas como o tempo. Não quero convencer porque talvez só entenda quem já esteja convencido — e além disso, certas ideias precisam encontrar seu próprio tempo. Ainda que os valores que elas refletem timidamente já se mostrem na atitude de muitas pessoas ao redor do mundo, seguramente elas ainda esperam seu tempo. Quero crer que um dia seus valores e princípios serão também os valores e princípios daqueles que virão, desses que desde já temos condenado a viver num ambiente devastado e transformado pelo nosso egoísmo. Será um futuro glorioso.


* Acho que a discussão sobre quem veio primeiro (quem determina quem?), o ovo ou a galinha, digo, a teoria ou a prática, se encerra com a pragmática. Isto é, se encerra com a constatação de que a regra não pode determinar a prática num sentido radical e de que a formalização é apenas um recurso técnico sobrevalorizado numa sociedade científica que herda o marco do pensamento de grandes lógicos como Kant e Frege, ou de matemáticos que tinham aspirações universalizantes.

Atualização: uma tardia mas necessária atualização, para temas como esses inevitável não pensar no Douglas Rushkoff. Ele certamente tá indo no sentido de um Team Human (ainda que talvez de modo menos radical que eu).

Uma ideia de força

Bondade é força, generosidade é força. A ideia de força que parece prevalecer atualmente se liga à ideia de acúmulo: acúmulo de dinheiro, de poder político, de saúde, de influência, de atenção (engagement talvez seja a palavra mais adequada). Tudo pode ser acumulado e tornar-se fonte de força e poder. Quem caminha no sentido contrário não tem como meta a acumulação, mas a concessão, a dádiva — que se opõem à acumulação. A mesma dádiva que nos alimenta quando podemos receber os amigos e amigas (e os amores), ouvi-los, fazê-los mais alegres. Uma vontade de servir, servir de bom grado, uma alegria em servir. Algo muito diferente do gosto por ser servido que manifestam os acumuladores (especialmente no Brasil, onde o fetiche de ser servido é marcante na vida social). Mas a força da dádiva é exigente, exige um tipo de capacidade aparentemente sem valor simbólico, mas que não podemos deixar de reconhecer quando sentimos sua presença. É preciso excesso pra ter essa força. Ou melhor, essa não é uma força que se pode ter ou possuir, porque toda força que se deixa possuir é limitada pelo capacidade do portador. Como se o portador de um poder ou de uma força fosse um recipiente com um/a limite/capacidade de acúmulo e armazenamento. A força da generosidade consiste precisamente em que ela não seja acumulativa e, portanto, não sofra com os limites de um portador (recipiente) limitado. O poder que não se pode portar é muito maior que qualquer poder que se pode acumular. Pra participar desse poder precisamos ser pessoas que não se tornam pobres, por mais que concedam. A força da dádiva é a força da amizade, da partilha, do entendimento que transcende quadros normativos.

Curiosamente, é o mesmo tipo de força que move a luta pelo conhecimento livre.

Considerações sobre valor

Admitam as duas circunstâncias hipotéticas:

A) Um homem lê um exemplar da literatura ziniguistanesa e conclui em seguida: “A literatura do Ziniguistão¹ é imprestável”.

B) Contando com a leitura de grande parte dos livros publicados no Ziniguistão nos últimos dois séculos, um especialista em literatura ziniguistanesa afirma: “A literatura do Ziniguistão é imprestável”.

A diferença entre as duas afirmações parece saltar aos olhos, porém, ambas solicitam que sejam identificados critérios pelos quais se distingue o objeto a que se referem. Os critérios, ou o que chamarei de domínio de critérios, pelos quais se identifica a literatura ziniguistanesa fornecem o fundamento do seu valor. Portanto a constituição de um domínio de critérios é condição para atribuição de valor e a publicidade do domínio necessária para participação na linguagem.

O vínculo entre o valor atribuído e o domínio de critérios é sempre arbitrário — pelo mesmo domínio poderíamos conceber um valor contrário. Com frequência, estabelece-se posteriormente uma relação estável entre o valor e o domínio de critérios através da qual essa ligação é tornada regra para apreciação do objeto referido. A regra é investida de autoridade oriunda dos mais diversos meios: tradição, eficácia relativa a um fim, etc. O valor, contudo, resta ainda como uma decisão pela qual nos habilitamos a manusear os objetos do valor de certo modo. As afirmações (de valor) não são consequências, tampouco respostas a um estímulo externo, a uma experiência, antes, são as condições pelas quais se negocia com as experiências, artifícios construídos para que se faça uso delas — ou o assentimento a um domínio de critérios previamente ensinado e estabelecido (assentimento a uma regra). Não há causa empírica para valores.

O sentido (uso) das afirmações só se realiza pela pressuposição de que se partilhe um domínio de critério mediante o qual se pode chegar à conclusão². Por essa razão, podemos entendê-las de dois modos:

A’) Através de uma afinidade anteposta (que realiza a exigência do partilhamento do domínio), pretende-se produzir no interlocutor reações relativamente iguais àquelas produzidas em quem a enuncia.

B’) Nesse uso deve-se contar com o reconhecimento, por parte do interlocutor, das diferenças qualitativas e quantitativas dos domínios de critérios. Só por meio desse reconhecimento a antecipação da conclusão pode intimidar através da sugestão de um amplo domínio de critérios, de uma hierarquia. A estratificação do domínio de critérios e a legitimidade conferida a essa configuração é a fonte exclusiva de onde o valor extrai autoridade e força. A insinuação da posse de um domínio de critérios é um meio de imposição de força e expediente através do qual o debate cessa antes mesmo de começar (sobretudo quando ao locutor cabe o epíteto de especialista).

Apontar a contigência da configuração do valor nos proporciona as seguintes vantagens: Livra-nos da possibilidade de imposição de força, do uso subjetivo de recursos objetivamente constituídos; permite-nos conferir maior flutuação e dinamismo à constituição dos critérios operativos presos não às vantagens que proporcionam, mas às comodidades que oferecem aos que dominam os meios de manipulá-los segundo seus interesses, a um uso político e porque não, despótico.

Não se pretende com isso esgotar as intenções relativas à afirmação de valores, mas destacar dois uso ilegítimos que se seguem a uma imagem da operação valorativa — que é válida e útil, porém, que deve ser escrupulosamente policiada.


¹ Por questões políticas preferi submeter às críticas fictícias o país hipostasiado por André Dahmer (nosso Tolkien), do que arriscar ser censurado por meras hipóteses.

² Se todos partilhassem o mesmo domínio de critérios a experiência de ler um livro ruim seria reduzida a níveis baixíssimos, porquanto poderíamos comunicar uns aos outros que livros devem ou não ser lidos com a certeza de que estaríamos transmitindo uma informação objetiva.