Nunca conheci homem pior do que eu mesmo

Há poucos escritores mais vitais e organicamente profundos que David Henry Thoreau. Seu texto é tão forte e natural quanto a respiração de um jovem gorila de costas prateadas. Sem falar na beleza. O que não significa que seja, por isso, acessível, embora límpido e cristalino como as águas do lago Walden. Não poucas vezes o fluxo do seu pensamento é torrencial e as ideias requerem atenção redobrada. Deixo aqui este fragmento ao qual me sinto inclinado a voltar por tantas vezes e por muitas razões. Ainda que o fragmento tenha muitos aspectos fascinantes, a confissão final talvez seja o que mais me atrai — pelo que ela tem de serena, apenas do seu teor.

Eu quero a flor e o fruto de um homem; que alguma fragrância flutue dele até mim, que alguma doçura dê sabor a nosso contato. A bondade dele não deve ser um ato parcial e transitório, mas um transbordamento constante, que não lhe custa nada e do qual ele não se apercebe. É uma caridade que encobre uma multidão de pecados. Demasiado amiúde o filantropo cerca a humanidade com uma atmosfera composta pela lembrança de suas próprias dores superadas, e ele dá a isso o nome de solidariedade. Devíamos compartilhar nossa coragem, não nosso desespero, nossa saúde e nosso bem-estar, não nosso mal-estar, e cuidar para que este não se espalhe por contágio. De que planícies do sul se elevam as vozes da lamentação? Em que latitudes residem os pagãos a quem enviaremos a luz? Quem é o bruto e intemperado que redimiremos? Se alguma indisposição ataca um homem e ele não faz suas necessidades, se sente dor nos intestinos – pois aí fica a sede da solidariedade –, imediatamente ele se põe a reformar – o mundo. Sendo um microcosmo, ele descobre – e é uma autêntica descoberta, e ele é o homem certo para fazê-la – que o mundo anda comendo maçãs verdes; a seus olhos, de fato, o próprio mundo é uma grande maçã verde, e há o perigo, medonho só de pensar, de que os filhos dos homens lhe deem uma mordida antes que esteja madura; e sua drástica filantropia se estende incontinenti aos esquimós e aos patagônios, e abraça as populosas aldeias indianas e chinesas; e assim, com alguns anos de atividade filantrópica, enquanto isso os poderes políticos certamente utilizando-o para seus próprios fins, ele sara de sua dispepsia, o globo adquire uma leve cor numa ou nas duas faces, como se estivesse começando a amadurecer, a vida perde seu travo e volta a ser doce e saudável viver. Nunca sonhei com nenhuma enormidade maior do que cometi. Nunca conheci, e nunca conhecerei, homem pior do que eu mesmo.

David Henry Thoreau, Walden, A vida nos bosques

PS. O texto me lembra as palavras de Werther sobre o mau humor.

O medo

Eu sempre fui medroso. Acho que já mudei bastante, mas ainda tenho muito medo. A tendência obsessiva quando encontra o medo é como uma fissão atômica: a força escavadora da obsessão potencializa a tendência a ensombrear própria do medo de tal sorte que os pequenos detalhes de cada coisa tornam-se — para usar a expressão de Borges que me é cara — a semente de um inferno possível. É um buraco sem fundo.

A constância do medo provoca uma naturalização, o medo naturalizado se transforma no estado de alerta, algo que se deixa ver em nosso comportamento. Na constante atenção ao que se passa a nossa volta, na tendência a perceber e avaliar, a cada instante, as variáveis do ambiente. O contrário disso é a distração. O medroso é qualquer coisa, menos distraído.

Há poucas expressões mais fiéis e bem feitas do medo (e de suas consequências) que a cena inicial de Apocalypto:

O medo é como uma infecção, uma infecção da alma. Ele corrompe a paz e nos torna escravos daqueles que sabem manipular aquilo que nos amedronta. Não somos diferentes dos animais. Quando um chimpanzé se propõe a assumir a função de macho dominante, ele precisa aterrorizar todo o grupo. Ele quebra galhos, grita, faz arruaça, age violentamente até que todo o grupo esteja literalmente aterrorizado, só então ele pode ser aceito e acolhido pelos outros como o novo líder. Como se a paz fosse uma espécie de concessão que ele permitisse aos outros. Não é imensamente parecido com o que acontece nas sociedades humanas?

O medo me faz pensar na ideia de serenidade.