A estratégia é simples: postula-se que o intelectual diz o supérfluo, o excessivo, que a idéia se preserva, ou pelo menos aquilo que nela é essencial, ainda que despojada das minúcias que o intelectual, esse pobre esbanjador, projeta sobre sua forma. É um pensamento absolutamente controverso, defensável talvez, contudo aqui ele é um postulado, algo que se admite com antecedência e só por isso o intelectual figura na classe dos predicados pejorativos. A consequência é a instauração de um território cujas fronteiras são delimitadas de um lado pelo conjunto de burros, que nada dizem de relevante, de outro, pelo conjunto de intelectuais, que tratam as coisas de modo excessivamente sofisticado, prejudicando, por isso, a inteligibilidade e manuseio dos objetos que tomam — é preciso destacar que essa sofisticação, para eles, é excesso, compromete um princípio econômico, onera a estrutura do argumento, por fim, atenta contra a navalha de Occam. No entanto o vínculo entre o que diz o intelectual e o atentado contra economia da linguagem, repito, é postulado e não inferido. Só a partir dele é possível tornar a palavra “intelectual” pejorativa. Esse postulado de que o intelectual diz apenas o supérfluo, o excessivo, nunca se expressa em discurso, pois é um dogma. Posto na mesma ordem que outras proposições ele poderia ser falseado, colocando assim em risco a estrutura que resguarda o território.
Burros e intelectuais fracassam, enquanto o restante conduz o mundo mediante uma visão econômica, essencial, simples, que nunca se torna complexa ou diz algo pretensioso. Quem organiza o mundo segundo esses pressupostos não tem outra coisa a fazer senão tornar pejorativo tudo que escape ao seu domínio. A complexidade do trabalho intelectual não é trivial, em grande parte ele resulta do esforço para definir as condições de acesso a verdade, se esse esforço constitui o trabalho de uma vida e se servesse de uma tradição milenar é porque sabe da importância desse conceito para a vida humana, é porque sabe que não se pode desprezar a pretensão a verdade nos seus mais elementares usos. À parte alguns desses usos — como pode ser o literário — parece estranho que se possa dizer algo que não se abale mediante a denúncia de falsidade, mentira ou mau uso. Não é trivial a condição de um texto poder ser verdadeiro ou falso. Escapar às implicações de uma contestação alegando que não se pretende atingir a verdade parece o expediente de um criança cuja realização de um desejo é interditada e que para escapar à contrariedade e submissão patente revela, com algum rancor, que não desejava de fato aquilo que lhe foi negado.
Todo discurso que fala sobre o mundo mostra suas condições de verdade. Um texto pode ser muito bem articulado, guardar coerência entre os elementos que o constituem e no entanto ser plenamente falso. Isto pode ser ilustrado através de silogismos simples:
Todo brasileiro tem três olhos
José é brasileiro,
logo José tem três olhos
Uma conclusão perfeitamente válida, embora falsa. Contudo nem todas as idéias complexas mostram de modo evidente suas premissas, às vezes o componente mais importante nem mesmo é enunciado. Vejamos então o caso do texto de Eliane Cantanhêde, Quando vai ser o próximo?, da Folha de São Paulo, um par de dias após a queda do avião da TAM (leia o texto antes de continuar). Nada que por lá figure pode ser alvo de censura: as idéias estão expressas com bastante clareza e as inferências são perfeitamente válidas — não fosse pelo fato de que um argumento bem articulado não tem força se assentado sobre fundamento questionável.
O que explodiu hoje não foi só o Airbus da TAM. Foi também o resquício de credibilidade que ainda sobrava do sistema de vôo no país e a capacidade de o governo, no seu conjunto de órgãos responsáveis, gerir a situação. O que há é o caos. Junto com a dor, a perplexidade e a sensação de que não tem mais conserto.
Desculpe, mas o que todo mundo agora se pergunta é: “Quando vai ser o próximo?”
Dois dias após o acidente a colunista da Folha já se julgava habilitada a determinar causas e culpados. A determinação, contudo, é pressuposta. No texto ela trata das consequências daquilo que já está estabelecido, isto é, a culpa do governo. Como este termo indispensável ao seu discurso está subentendido, o leitor incauto é levado a passear pelas conclusões da articulista sem questionar o que está ausente. Observem que não se trata de um problema lógico — é antes um problema técnico. Sob o ponto de vista lógico seu argumento é válido. As chamas não haviam se extinguido quando ela resolveu escrever sobre o caso e é somente em razão de uma impossibilidade técnica convenientemente omitida que o texto naufraga no mais profundo sem-sentido.
O final é delicioso, o gesto retórico, de uma sensibilidade comovente, ela diz: “Desculpe, mas o que todo mundo agora se pergunta é: ‘Quando vai ser o próximo?'”. O desculpe é brilhante, brilhante — através dele Eliane convida o leitor a partilhar o ônus da tarefa de enunciar uma verdade dura, mas imprescindível, revela-se quase como uma mártir, quebra o silêncio constrangedor com um ato de ousadia e expressa a pergunta fatal. Assim, dissimulado sob o véu de uma retórica compentente, quem imaginará que resta na base desse discurso um parecer apressado e leviano?
Será que Eliane também escreveu despretensiosamente, sem preocupações? Será que para ela não fazia diferença dizer o verdadeiro ou o falso? Que pretendia apenas estimular seus leitores? Minha resposta é categórica: não. Que os outros, se quiserem, exponham suas opiniões.