Vocês bem sabem que nas últimas publicações estive ocupado com questões de natureza psicanalítica. Tenho especial interesse pela melancolia — razão pela qual um dos primeiros livros que comprei quando me aproximei da psicanálise foi Sol negro: depressão e melancolia, de Julia Kristeva. Tudo isso motivado pelo trabalho de conclusão de curso, pelo uso que Marcuse faz dos dispositivos teóricos engendrados por Freud. Pois bem, faz algum tempo desde que por aqui comecei a colar poemas de minha preferência, entrecortados entre algumas considerações, alternados em meio a temas diversos. Ora sugeridos por meus amigos e amigas, ora recordados no ânimo de alguma situação particular, o caso é que até então eu não sabia bem o que me levava a submeter alguns deles a vocês, a relacioná-los a tudo quanto por aqui versa.
Ontem, na esteira dos meus estudos psicológicos, vislumbrei uma explicação que talvez lance alguma luz sobre minhas incertezas. É uma explicação que envolve a análise de componentes sociais, culturais e acima de tudo a constituição de defesas emocionais contra certos arranjos típicos dos nossos tempos:
Esmagados pela profusão de imagens que vertem sobre nós descaradamente todos os meios de comunicação, resta-nos muito pouco senão olhar, ainda que distraidamente, esse desfile de modelos, normas, paradigmas, estereótipos; enfim, a ladainha doutrinária com a qual somos domesticados. Estamos, ao menos tempo, tão precariamente armados para combater estas ameaças que quase sempre sucumbimos ao desejo de pertencer aos grupos aos quais nos dizem que deveríamos fazer parte. Se por um instante aceitamos trilhar esse caminho nebuloso, se cedemos ao desejo de integrar a engrenagem cultural tal como ela se apresenta nos dias de hoje, logo entendemos porque a depressão têm alçado a condição de doença do século. Ninguém é capaz de acompanhar o fluxo irrefreável com que os modelos são produzidos e preteridos, as tendências, as normas, tudo ascende e declina num ritmo insuportável e quem se arrisca a subordinar a essa cadência sua vida, suas idéias e valores, tem quase certa a disposição para a melancolia. A dimensão das exigências, seu número incontável, torna todo esforço por satisfação inútil. Quando nossa vida se orienta segundo padrões irrealizáveis — porque sempre novos, sempre outros, apoiados num terreno cambiante e fluído que, pelo propósito de renovar o desejo incessantemente, conjura o tédio e, portanto, ligar-nos de imediato ao bálsamo do prazer barato que atenua as tensões e sublinha a conformidade — inevitavelmente nos colocamos num terreno propício à melancolia. Para atingir o inatingível todo esforço resulta em nada e não há ego que resista a sucessão de fracassos que se segue à campanha inglória empreendida nessa busca.
Os poemas oferecem um substituto para este solo movediço, eles nos irmanam, como eu já disse num momento anterior, em desgraça. É melhor a certeza do fracasso que a incerteza do sucesso! Mas se olharmos com atenção perceberemos que o fracasso patente nas expressões poéticas não são outra coisa senão o resultado de uma visão contaminada pelos componentes que deveríamos refutar. Os poetas levam às últimas consequências as medidas que operam a administração da vida cotidiana e se identificamos uma fraternidade de desditosos é porque ainda não nos desvinculamos dos valores denunciados. Os poemas de Drummond são pródigos em reduções caricatas que guardam alguma realidade.
Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.
O ideário moderno foi quase inteiramente mobilizado em três estrofes. A vitalidade, a juventude, o amor, os bens, a posse que marca a riqueza, tudo isto passou e nada resta senão o compartimento no qual um dia tudo esteve, conservando, como nas palavras de Pavese, o caráter inabitável dos lugares onde fomos felizes. O gosto amargo da perda só vem para aqueles que desejam tudo que se perdeu. Não posso deixar de pensar que há certa ironia na operação que condiciona as experiências coligidas segunda categorias bem determinadas. O choro que se quer evitar talvez seja mesmo inevitável, mas o humor consiste em não perceber tal destino, está na crença de que se pode esgotar toda a vida tomando-a segundo as modalidades que em geral evocamos para com ela lidar. O que Drummond e Pessoa mostram, de algum forma, é a ficção inevitavelmente talhada para atender as nossas necessidades e se riem do nosso teatro, do quanto sofremos por acreditar naquilo que nós mesmo criamos, mormente, pela recusa em aceitar que este cenário não passa de uma ilusão provisória, como se o espetáculo perdesse um pouco do seu brilho caso não fosse real, isto é, determinado de fora.
A desgraça é apenas a ficção, a comédia que se veste em tragédia — e fere como tragédia — através da qual nos reunimos na condição de criadores, de inventores. A fraternidade inaugurada por esse grandes escritores envolve os riscos e as dores em causa na criação dos próprios valores, a solidão imperativa daqueles que não alienam o poder de criar em nome da satisfação passageira e viciada da integração com a comunidade, com as tribos, e com as formas de gregarismo nas quais as tensões do indivíduo encontram o suporte de uma infelicidade compartilhada, do prazer efêmero e sempre presente, repetido, até cansar. No mimetismo no qual os fracos descansam seus espíritos indolentes. Essas formas banais de silenciar a falta, de mascarar a ausência, a perda, que são não deficiências a serem superadas, mas condições para o realização do desejo e da satisfação. Os poetas nos devolvem o status de seres faltantes, incompletos, cuja vida não pode ser identificada senão pela atividade de saturar essa função e novamente insaturá-la, pelo movimento incessante, cíclico, de criar e satisfazer os próprios desejos, pelo pesar que marca o trabalho de criação, de escolha e portanto, de resignar tantos outros caminhos preteridos. Entregar aos outros a responsabilidade pelo seu destino é fórmula para apaziguar o fracasso e não só os poetas vêem isso. Dostóievski viu e narrou esse caso em “O grande inquisitor”, capítulo de Irmãos Karamazov.
Ao final do trabalho terapêutico da poesia, teremos novamente nas mãos as rédeas da vida e poderemos doravante tocar tudo que desejarmos, pois seremos nós a ditar os alvos do desejo. E estaremos habituados com a sombra do fracasso e da contingência, porque só elas podem tornar significativo tudo é que é bom o glorioso. E acima de tudo, não aceitaremos que nos digam por onde ir, como recusou José Régio em seu proverbial Cântico negro:
“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãeNão, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí…Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios…
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
– Sei que não vou por aí!
Ou talvez ainda como em Lisbon revisited (Álvaro de Campos), recentemente sugerida e que de alguma forma se liga a toda a matéria que aqui tratei.