Mais um fuzilamento

M
Ao saber da morte por espancamento do menino Dênis no pré-carnaval de Recife, não pude deixar de lembrar do conto de Clarice que conheci através da entrevista sugerida numa publicação anterior. Antes disso, aventara escrever brevemente sobre a diferença entre a imagem do criminoso apresentada no conto e a forma geral que distinguimos nas ocorrências dos nossos dias, de modo a traçar uma significativa mudança na matriz da criminalidade e da relação da sociedade com os criminosos. Contudo, diante dessa notícia, senti uma espécie de letargia, para ser honesto, afasia talvez seja a palavra adequada. O sentimento de que tais considerações são, agora, de pouco valor. Faço melhor destacando o momento mais contundente da escrita de Clarice sobre a execução do criminoso Mineirinho.

Não é excessivo relembrar que o garoto Dênis, ao contrário de Mineirinho, não era criminoso — o que dá ao caso feições ainda mais grotescas e terríveis. O desfecho do conto é desconcertante e substitui com larga eficiência e força tudo eu que imaginei poder dizer.

Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato. (grifos meus)

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