Quem não gostaria de ter um super-poder?

Q

A ficção científica é um tipo de ficção que se desenvolve tendo como base alguma ideia da ciência, mesmo de modo remoto e inapropriado. Por exemplo, Interestellar explora a plasticidade da ideia de dimensões na física e a relatividade do tempo. Eu tenho a impressão que boa parte dos cientistas não gosta dessas apropriações ficcionais, porque não concorda com a interpretação que se faz de suas teorias. De qualquer forma, a intenção de apropriar-se de elementos da ciência é o que caracteriza a ficção científica (apropriação que se dá com toda a liberdade que é própria à arte, naturalmente).

E há outros modos de ficção? Claro, todas as ficções que não estão interessadas em explorar nem as ideias e as teorias científicas, nem os seus fatos universais, pertencem a esse conjunto indeterminado que contém todas as outras formas de ficção, excluída a ficção científica. Não há porque dar um nome a isso que resta. Dentro dessa heterogênea classe, tão diversificada quanto a enciclopédia chinesa sobre a qual Borges escreve, estariam coisas tão distintas quanto, O alienista, Perto do coração selvagem, Guerra e Paz e Klara and the sun. Mesmo que não seja necessário, eu vou propor um nome e uma designação para tudo isso que resta, uma vez subtraída a ficção científica, o nome da classe nascida dessa operação de subtração seria ficção ética. A ficção ética pode ter um certo enlaçamento histórico, como no caso de Guerra e Paz, ou não, como no caso de Perto do coração selvagem. Mas em qualquer caso o compromisso com a verdade é um artifício na mão de quem cria a obra, e ela pode ser perfeitamente preterida. O criador ou criadora pode não ter nenhum compromisso com a verdade, pois essa é a prerrogativa fundamental de que tudo aquilo designamos como ficção.

A ficção ética pode ter um propósito artístico, como na literatura, ou mesmo no cinema, mas ela pode ter também um papel filosófico — e é isso o que quero explorar aqui. Vou usar uma tag semelhante às utilizadas no código html para indicar o início e o fim da <ficção>, e logo eu tento fazer um uso filosófico da imagem. Aliás, já usei o mesmo recurso antes, quando falei da mesma ficção no post Transmitindo super-poderes.

<ficção> Imagine que cada um de nós tem seus próprios poderes e talentos, poderes que não são únicos, como o dos heróis das ficções que consumimos nos quadrinhos ou no cinema, mas que podem chegar a ser raros; às vezes pode acontecer de que uma pessoa tenha um talento que não é incomum, mas que simplesmente nos falta. O talento para falar não é de todo mundo, agora imagine qualquer um desses talentos como um super-poder. Na ficção sugerida no outro post, sobre super-poderes, eu sugiro que imaginemos que nossos super-poderes são portáteis, que podem ser passados, como as informações dentro de um computador podem ser passadas pros outros usando um pendrive. E partir disso eu pergunto: se pudéssemos transmitir nossos poderes aos outros, nós venderíamos ou concederíamos nossos poderes?

Mas o que eu quero considerar aqui é algo diferente: imagine que nós pudéssemos (capturar || absorver || assimilar || apropriar-nos de) esses super-poderes se pudéssemos identificá-los, simplesmente notá-los nas outras pessoas. Se nós não os notássemos, não poderíamos possui-los, mas se os notássemos, nós poderíamos tê-los para nós, como que por mágica. Essa apropriação de talentos e super-poderes seria sempre proporcional a uma medida abstrata e indeterminada relativa àquele de quem o poder foi adquirido, de tal sorte que ninguém poderia aprender a falar melhor do que a pessoa de quem absorveu o “poder de falar e se comunicar” </ficção>

É um poço sem fundo de considerações filosóficas a contemplação dessa mera porca possibilidade ficcional. Primeiro, parece inevitável pensar que mergulharíamos ainda mais fundo no egocentrismo tão próprio da nossa sociedade, estaríamos atentos aos outros, com o único interesse de melhorar a nós mesmos. Se quiséssemos aprender a tocar saxofone, teríamos que ser capazes de notar o talento de bons saxofonistas. Poderíamos nos tornar bons saxofonistas praticando, como sempre tem sido, mas pareceria muito mais rápido e fácil simplesmente notar esse super-poder como forma de absorver a competência que lhe corresponde.

Essa vontade de notar os outros com o interesse de apropriar-se dos seus poderes — mesmo que a gente conceda que seja uma forma de egocentrismo —, não necessariamente teria efeitos estritamente egoísticos, muito pelo contrário! Além do mais, o desinteresse compreendido como elemento que confere legitimidade aos propósitos de uma ética é um aspecto da filosofia de Kant que não precisamos conservar, podemos admitir o interesse sem nos sentirmos sujos, meros aproveitadores e oportunistas. Podemos ser nietzscheanos, nesse sentido.

Eu tenho a impressão de que, pouco a pouco, levados pela necessidade egocêntrica de nos melhorar, de nos aperfeiçoar, de corrigir nossas falhas e deficiência, nós desenvolveríamos um olhar tão afinado em relação ao outro, tão capaz de fazer distinções finas, quase arbitrárias — onde os outros veem sempre o mesmo — que nossas próprias identidades se tornariam plásticas, se não frouxas. Pouco a pouco o contato com esse outro que agora nós vemos para além do conceito, na prática, em cada caso, nos tornaria iguais a eles. A medida que fossemos absorvendo os poderes dos outros, iríamos deixando de ser nós mesmos, abandonaríamos natural e organicamente eixos fundamentais de nossa identidade em favor de novos eixos, instados por novos modos de sentir e viver. E assim, vejam só, do mais profundo egocentrismo poderia brotar a Justiça, isto é, esse olhar que vê o outro não como instância de uma categoria que nós conhecemos, mas como caso particular e irredutível, como regularidade a partir da qual nos sentiríamos instigado a criar uma nova categoria, como se cada pessoa exigisse sua própria lei. A justiça é esse olhar tão apurado em relação aos outros que pareceria considerar as leis (leis jurídicas ou morais, o que importa é o campo normativo) com que julgamos os outros com os olhos de quem vê instrumentos insuficientes e precários para lidar com a complexidade em questão. E essa justiça nascente estaria mais interessada em fabricar e renovar a legislação do que em executar as leis, portanto seria um sentido de justiça bem diferente da justiça dos fofoqueiros (Twitter), dos que olham os outros com a sede de quem quer julgar, desde um higher ground, aqueles em relação aos quais precisa se sentir superior.

Imaginar esse mundo ficcional nos faz pensar nas atitudes que poderíamos ter em relação aos outros. Embora essa imaginação não seja nenhum conhecimento e que, por isso, não possa nos oferecer instrumentos para manipular o mundo e a realidade com determinação, ainda assim é como se elas nos oferecesse algo, algo muito importante. Bem, esse é o significado de uma ficção ética. Daquilo que se pode fazer em filosofia mas que, felizmente, temos até hoje desfrutado por meio da arte (da literatura, como nos lembrava Rorty). A arte tem muito o que nos ensinar e muito o que nos ajudar a aprender — para além dos fatos e da verdade.

Adicionar comentário

outras redes

Perfis em outras redes

Preferidos

A categoria Preferidos é especial, porque reúne os textos que eu mais gosto. É uma boa amostra! As outras categorias são mais especializadas e diversas.

Categorias

Arquivos