Sinto que há em mim um suprimento inesgotável de raiva, uma raiva que parece ainda maior que o meu medo. Talvez seja o efeito de uma certa covardia, mas eu sempre pensei que não devia deixar minha raiva se manifestar irrestritamente. Eu tinha que controlá-la, mesmo que ela insistisse em aparecer nas situações mais triviais. É claro que a raiva se manifesta de forma mais contundente em situações de conflito, mas eu sou uma pessoa pacifica. Nunca permiti que minhas ações fossem governadas por esse impulso. (Não permiti até um certo ponto, um pouco de raiva exala quase que espontaneamente de homens raivosos.) No entanto, mesmo sendo pacífico, tenho claras algumas lembranças das poucas situações nas quais a impulsividade da raiva quase turvou minha razão e conduziu minhas ações. Uma dessas ocasiões aconteceu quando eu jogava bola na rua (batia o baba, como dizemos na Bahia).
Dentre as figuras que batiam baba na rua com a gente estava uma que conhecíamos como Urucuvango. Suponho que o nome era uma tentativa de representar com fidelidade sua notória feiura e grosseria, era uma dessas expressões da malícia masculina e da sua capacidade para gerar diversão e entretenimento por meio da crueldade. Urucuvango era uma mistura de Gattuso com Simeone, não em termos de competência para o futebol, mas no que diz respeito a agressividade nas divididas. Certa feita Urucuvango dividiu uma bola comigo e eu quase me estatelei na calçada. Mais irritante do que sua força desmedida era a agressividade com que ele recebia qualquer (protesto|reação|queixa) contra a sua grosseria. O baixote peitava mesmo, era metido a valente. Nesse dia eu lembro bem da fantasia e do medo que cruzaram minha mente. Eu pensei que custaria muito pouco levantar a perna, flexionando-a o máximo possível junto ao peito para acumular força suficiente para poder transformar essa força em trabalho motor. A força acumulada seria despejada em seu tronco por meio do meu calcanhar (a parte mais dura do meu pé). E eu iria dirigi-lo às suas costelas, em pleno alcance da minha perna. Chega a dar prazer a mera contemplação dessa possibilidade, alguma coisa em mim queria esse pretexto, queria ter motivos pra esmagar a costela de alguém. Mas no instante seguinte eu pensei que além de poder causar uma lesão grave com o mero chute, ele ainda poderia cair e bater a cabeça no meio-fio, ou na parede de concreto que guardava um terreno baldio. O medo, o pavor da possibilidade de matá-lo, se aliou à minha covardia e eu consegui dominar minha raiva. A raiva é uma emoção muito poderosa, ela anula completamente nossa capacidade para pensar. Ela mostra o que nós somos e sempre seremos, animais. E como ela a faz isso? Numa palavra, hormônios.
Adrenalina (epinefrina), cortisol, o sistema nervoso simpático secreta hormônios e ativa neurotransmissores que bloqueiam o controle que o córtex frontal costuma ter sobre nossas ações — e um outro assume o comando. Não deve ser incomum que as pessoas simplesmente esqueçam do que lhes aconteceu após um episódio em que são possuídas por forças hormonais (vamos chamar assim). É como se a consciência estivesse ausente e assim entrássemos em transe. Os estados de êxtase corporal sempre provocam sensações semelhantes, experiências muito singulares para a consciência ou o simples apagamento da memória, como se a consciência nem sequer tivesse estado presente. Sem o córtex frontal, bloqueado pela reação de estresse agudo (flight or fight response) que libera esses hormônios no corpo, é claro que a consciência não está presente. Somos puro animal — e às vezes animais tremendamente ferozes. Em certas ocasiões, a ferocidade e a raiva dos animais que llevamos dentro de nosotros é perceptível. Como no estranho fragmento desse maravilhoso filme, Border:
Essa resposta hormonal é um dos milhares de aspectos que partilhamos com os outros, os chamados animais. (O homem é o animal mimado, deve haver algum equivalente em grego, zoon alguma-coisa, como o zoon politikón de Aristóteles.) Mesmo um animal poderoso como um urso, quando tem que atacar, precisa de uma boa dose de raiva e dos estímulos hormonais que lhe acompanham. Isso é o mais legal da cena do urso, em The Revenant.
A riqueza de detalhes sobre o comportamento do animal é impressionante, o que ele faria, com que força, que músculos se mexeriam e de que modo (muito se discute sobre o uso de CGI no cinema e o impacto disso pro custo e tudo mais). No final, o urso está cansado, ofengante. O impacto da bomba hormonal necessária para cansá-lo em pouco tempo escapa à nossa compreensão. Quanto de força um urso pode fazer até sentir-se esgotado? Agora imagine a potência dos seus golpes. E os ursos são animais incrivelmente resistentes. Certamente muito mais resistentes que nós, frágeis criaturas. A força de um animal daquele porte, dopado para que toda sua atenção e força estejam dirigidas exclusivamente àquela situação, vai além do que podemos imaginar. Nossas respostas corporais são não apenas inferiores, porque somos mais fracos, como também muito mais lentas. O tempo de reação dos animais é absurdamente melhor que o tempo do melhor dos nossos atletas (isso também aparece no tempo de resposta dos outros primatas, como sugere a Tradeoff Hypothesis). Nas ações do urso há uma violência sem igual, uma violência perturbadora, mas limpa, sem vestígios de crueldade. Sua raiva e ferocidade são parcimoniosas, não há nelas nada de excessivo, alegórico e simbólico. Elas se esgotam quando se esgota o estímulo hormonal. Não há nenhuma fantasia com o poder.
Não há dúvidas de que a ferocidade precisa ser integrada a nossa persona, não apenas para que possamos fazer uso de suas qualidades e atributos, mas, sobretudo, para mitigar a força de sua influência inconsciente — como sabiamente nos lembrava o velho Jung. O que verdadeiramente me fascina em tudo isso é a experiência do transe (no caso da raiva, vinculada às ideias de sangue quente e pavio curto), a despersonalização provocada pelos gatilhos hormonais. Naturalmente, essa experiência não se restringe à raiva (ou ao sexo), ela pode aparecer numa variedade surpreendente de ocasiões. Outra (nova) relação com todos os aspectos das experiências de despersonalização pode ser uma peça chave para o processo de transformação e mudança. Em alguma medida, é isso o que fascina na ciência psicodélica, nas pesquisas com substâncias como psilocibina, LSD, Dimetiltriptamina (DMT), no seu efeito sobre os transtornos de estresse pós-traumático — tem gente que diz que doses únicas podem ter um impacto completamente transformador. Mas essa já é outra história.