Nesses tempos sombrios em que parecemos perdidos, Luis Eduardo Soares é um dos intelectuais que tem publicado regularmente textos interessantíssimos. Sou contra o impeachment porque penso no dia seguinte é um deles, publicado antes do afastamento de Dilma. Um texto que além de analisar o cenário político, oferece uma proposta que não se situa no campo binário das duas forças antagônicas que tragaram o país. A hora e a vez do pacto republicano, seu novo texto, tem essas mesmas características, uma abordagem conciliadora e propositiva (ele trata do pacto necessário para superar as dificuldades que enfrentamos), que além do mais ousa ao tratar algumas questões sob as lentes de recursos conceituais não ortodoxos. No entanto, o texto contém algumas posições das quais eu discordo e que creio servirem para ilustrar alguns temas e tensões que constantamente encontramos nas diferentes narrativas que tentam explicar o que tem acontecido no Brasil nos últimos tempos.
Golpe. Há muita gente seriamente empenhada em combater o uso da palavra. Não me refiro ao próprio Usurpador e seus asseclas, mas a pessoas de esquerda. E não sem razão, vale dizer. Nos últimos anos o PT reduziu sua capacidade de mobilização a um apelo ao medo e à chantagem, situando-se no lugar simbólico daquelas contra os quais o slogan “A esperança vencerá o medo” foi elaborado em 2002. É natural que as pessoas não aceitem serem meros instrumentos na luta pela manutenção do poder. O PT tornou-se o monstro contra o qual lutou. Entretanto, os argumentos de quem se recusa a empregar o termo não são tão fortes quantos as razões para suspeitar da instrumentalização que o uso não raras vezes denota. Luis Eduardo Soares diz: “Um erro não é um golpe”. Talvez a mais forte objeção ao uso da palavra golpe seja uma definição do conceito que o caracteriza como ruptura institucional. No Twitter, Rafael fez um apanhado de autores e suas caracterizações de golpe. Nele vê-se que a coisa não é tão simples quanto parece e que muitos autores definem golpe de maneiras distintas. Por si só, isso já bastaria para enfraquecer o argumento que aponta a manutenção da ordem institucional como motivo da rejeição do termo. Mas continuemos a explorar a questão.
Como bom seguidor da Igreja Wittgensteiniana, sou inteiramente avesso a discutir palavras e termos. O padroeiro dizia: “Diga o que quiser, desde que isso não te impeça de ver como as coisas são”. Como as coisas são não é expressão de realismo, ninguém menos realista que Wittgenstein, é apenas um modo de manifestar uma precaução em relação aos encantos e feitiços da linguagem. Chamar ou não de golpe não deveria nos impedir de reconhecer que congressistas usaram a lei como instrumento para destituir uma presidente impopular, a fim de deter avanços de uma operação judicial que os ameaçava**. Não deveria também nos impedir de reconhecer que decretos de créditos suplementares são práticas comuns na administração pública brasileira e, mesmo que você não aceite essa objeção contra a denúnia que pesa sobre a presidenta, há que reconhecer que esse casuismo que passou estranhamente despercebido ante os olhos do STF, não deixa espaço a qualquer dúvida sobre as intenções daqueles que acusaram Dilma. E, paradoxalmente, nem mesmo Luis Eduardo nega as intenções dos congressistas. É o próprio Eduardo também quem crítica a visão dos que pensam a aplicação das leis em termos estritamente mecanicista, excluindo a dimensão de intencionalidade que lhe é própria. Se nós nos apegarmos ao conselho de levar em conta a dimensão de intencionalidade, como sugere Eduardo, fica evidente que chamar as ações de mero erro é inaceitável. Ninguém erra intencionalmente. Bem, na verdade poderíamos aceitar que as pessoas erram intencionalmente, mas um erro intencional revela o propósito a que ele serve. E é o propósito de usar leis segundo finalidades nada republicanas que caracteriza aquilo que muita gente chamada de golpe. André Singer preferiu um termo conciliador, golpe parlamentar. Talvez para conciliar a força do termo à objeção enunciado por Eduardo, sobre a manutenção da ordem institucional. De qualquer modo, a manutenção da ordem institucional é um argumento frágil para criticar o uso da palavra golpe. E no final do texto encontramos uma afirmação surpreendente:
(…) escapa à ordem constitucional quem organiza um governo buscando facilitar a salvação extra-judicial dos grandes operadores da corrupção.
A afirmação surprende porque ela contradiz o espírito da crítica ao uso da palavra golpe. Se quem organiza um governo buscando salvação extra-judicial escapa à ordem constitucional, por que não podemos falar em golpe? Apenas por que foi tudo feito de acordo com as leis? Luis Eduardo aqui sofre do mesmo viés positivista que julgava encontrar naqueles que acusam o golpe.
O erro. Outro ponto importante do texto é caracterização do impeachment como um erro. Ao meu ver essa questão é ainda mais frágil que a primeira. Tratar o impeachment como erro supõe além da diluição da complexidade do tema, uma redução de todo o emaranhado que o constitui a um simples ponto. Como se o impeachment fosse uma única ação (ou evento), passível de ser ou não qualificado como erro. Perde-se muita coisa ao tratar a questão assim, principalmente, como eu já indiquei, a dimensão de intencionalidade que nos leva a admitir quase inquestionavelmente o propósito dos congressistas (e do seu então presidente) ao pôr em marcha o processo de impeachment. Chamar de erro o processo permite que Eduardo critique os que consideram golpe o impeachment da presidente, alegando que eles não reconhecem “mediações interpretativas na aplicação de leis e normas”. É como se todas as possíveis interpretações tivessem que necessariamente situar-se numa escala gradativa entre o erro e o acerto. Quem denuncia o golpe não reconhece a escala, a despeito da preservação da ordem institucional. O que é inaceitável.
(…) parto do pressuposto de que isso não implica necessariamente a existência de uma ruptura político-institucional, passível de descrição como golpe de Estado.
A pressuposição de que não houve ruptura institucional molda a própria noção de erro que ele apresenta. É como se ele tivesse dito: não houve ruptura institucional, então o impeachment só pode ser erro e não golpe. É argumento frágil porque a próprio noção de erro é subsidiária de outro aspecto questionável, a definição de golpe como ruptura da ordem institucional. E claro que definir como golpe o impeachment não implica “acusar todos aqueles que se posicionaram a favor do impeachment de golpistas”. Embora o ressentimento seja um dos afetos mais presentes em torno de toda essa novela, acusar alguém de qualquer coisa supõe não infrequentemente a defesa de uma hipótese sobre as intenções de quem quer que seja. Nesse caso, a acusação de colaborar com golpistas não é um corolário que se segue à defesa da ideia de golpe, é apenas a expressão de uma generalização tão comum quanto sintomática, não raras vezes acompanhada de um ressentimento cego e inexplicável, mas ela que pode ser usada como prova contra os que argumentam a favor do uso da palavra.
Não sendo positivistas, podemos reconhecer a intenção dos congressistas envolvidos no processo de impeachment e então fica difícil negar que o propósito que eles tinham em mente contaminou o processo e o conduziu pelas vias institucionais sem maiores vícios formais (embora os vícios abundassem). Mas não ser positivista não implica aceitar todas as mediações interpretativas, como se fossemos sujeitos constituídos a partir dos mesmos elementos, portanto perfeitamente capazes de encontrar soluções intermediárias para nossos dilemas, uma vez que estivéssemos dispostos a negociar e fazer política. Estou de acordo com a proposta republicana que Luis Eduardo Soares oferece, mas isso não implica aceitar a tese filosófica que parece fundamentá-la. “On est toujours l’irrationaliste de quelqu’un”, lembrava Bento Prado em seu livro Erro, ilusão e loucura (título mais que oportuno). É sempre tentador ver no outro um mero irracionalista ou, nesse caso, um positivista, alguém que insiste em negar os termos comuns da nossa construção simbólica. Acontece que nem sempre podemos restabelecer esse campo comum que poderia parecer a base para a estabelecimento de mediações interpretativas ou pelo menos o campo onde algo do gênero pode ser negociado. Como adverte o próprio Eduardo na seção 1 do texto, corresponde a uma ameaça mais preocupante que as diferenças inconciliáveis e irredutíveis o aplainamento de qualquer diferença por meio de um apelo a formas. Como se as formas determinassem o conteúdo. Como se a regra determinasse o caso. Isso não funcionou em filosofia (vide Kant, Wittgenstein, e tantos outros) e não funcionará tampouco em política. Vamos prestar atenção às formas, mas sem descuidar das intenções e das práticas. Se discordamos sobre sobre a avaliação das intenções dos atores envolvidos na coisa toda (os políticos, claro), bem, aceitemos que podem existir diferenças incontornáveis. Eu não tenho dúvidas.
** O golpe poderia então ser caracterizado assim: um “desvio de finalidade” de um recurso excepcional como o impeachment, em favor, como já se constatou, de interesses distintos aos alegados na acusação. No Twitter, Joaquim Barbosa fez algumas considerações sobre processos semelhantes que aconteceram na história americana, tentativas de impedir um presidente pretextando banalidades formais que eram mera cortina de fumaça pros reais interesses. Por preguiça, não localizei os tweets.