Não há espaço para discutir a responsabilidade dos EUA e da Europa nos atentados terroristas de ontem. Não é o momento, dizem. Ora, depois que se estabelece que não é o momento de se falar disso, todos que ousam desafiar a regra acabam mal vistos. São culpados, insensíveis ou o pior de todos — relativistas. (Não há palavra mais incompreendida no Ocidente). Mas dois podem jogar esse jogo. Sem pesquisar, alguém saberia dizer quantos morreram no atentado do ISIS ontem em Beirute? Não? Por que será? Milhares de pessoas continuarão morrendo diariamente — e uma imensa comunidade muçulmana sofrerá em consequência das ações de grupos minoritários, porque alguns acham que não é o momento de discutir. Essas pessoas também merecem viver, merecem paz. Aqueles que não querem discutir agora a responsabilidade pela criação dos contextos que fomentam e fortalecem grupos terroristas não apenas podem ser acusados da mesma insensibilidade que tentam lançar sobre os ombros dos que querem discuti-la, mas também de hipocrisia. Eles não conseguem assumir como variável de seus argumentos que vidas francesas valem mais que vidas de libaneses, sírios, iraquianos, etc. Não estou fazendo essa afirmação, mas apenas dizendo: no jogo político em que está envolvido o terrorismo, este é um fato. Ninguém sabe quantos morrem diariamente em razão das trapalhadas americanas e europeias fora da Europa ou do EUA, mas todos sabem o nome e a história de cada europeu ou americano morto pelos terroristas. É por isso que este é o melhor momento pra se discutir as responsabilidades desses países. Não apenas em respeito aos franceses mortos, mas, sobretudo, em respeito às dezenas, talvez centenas que morrem anonimamente toda a semana sem que notemos, pelo simples fato de não serem europeus.
Eu entendo que seja mais fácil lidar com duras constatações como essas acusando os outros de insensibilidade e relativismo. Mas isso não é um argumento, não importa quão capacitado você acredite estar para falar sobre tudo que concerne ao tema.
Há que adicionar um outro ingrediente nesse caldo complexo: é muito provável que os terroristas sejam franceses.
Há muitas obviedade esquecidas. É claro que o objetivo dos terroristas é causar terror, medo. Mas esquecemos que há também interessados em administrar politicamente o medo. Muitos espantalhos podem ser construídos a partir dessa obviedade, mas nem por isso ela deixa de ser verdadeira. Obama disse que foi um ataque aos valores da humanidade. Há poucas frases mais cínicas — e não porque não seja verdadeira, mas porque ela é diariamente verdadeira. O EUA ataca valores humanos diariamente com seus drones e nem por isso nos sentimos atingidos. Somos todos iguais, mas uns mais iguais que os outros.
Solidariedade é uma palavra chave nessa questão. Por essa razão se recrimina os que querem discutir a responsabilidade dos EUA e dos países europeus. “Vamos tornar as vítimas culpados?”, pensam, na certa. Simplificações existem em qualquer cenário da vida humana. Acontece que a sensibilidade pela dor de cada família que receberá a notícia de um parente morto não é incompatível com a urgência em discutir a responsabilidade dos grandes atores políticos envolvidos na falida “guerra ao terror”. Se alguém acredita que a necessidade de discutir isso, nesse momento, é prova de insensibilidade, paciência! As pessoas acreditam no que querem. Mas não há razões para isso — e é perfeitamente possível que as duas coisas coexistam sem contradição.
Diante desses acontecimentos sentimos que devemos ter medo, mesmo que nossas vidas não estejam diretamente afetadas por eles. “Elas podem estar, nunca se sabe”. Terrorismo é isso: uma tática de difusão de um medo sistemático, amorfo e arbitrário. E é este caráter imprevisível que faz desse medo um dos piores que há, pois pensamos que ele pode estar em qualquer lugar, pode atingir qualquer um, inclusive nós mesmos. O sujeito que se sente ameaçado, age como alguém ameaçado e endossa políticas que refletem essa justificativa. Vocês acreditam que alguma política justa e democrática virá como resultado da gestão política desse novo foco de medo? Vocês acreditam que as verdadeiras causas do terror serão verdadeiramente discutidas e combatidas no encontro de líderes nos próximos dias?
O medo é uma forma de solidariedade. Se nós tratássemos como se não fosse com a gente, como se, apesar da tragédia, a vida tivesse que seguir, é como se disséssemos: eles não valiam nada mesmo. Não! Podemos achar que tudo isso é importante e ainda assim seguir em frente. As notícias diárias sobre mortes no Oriente Médio nós as ignoramos sem solenidade (se é que nos inteiramos delas). É difícil lidar com a constatação de que a vida de quem está do nosso lado é mais importante para nós. Acho que isso não é um problema, desde que sejamos honestos para admitir que as coisas são assim e para agir de modo minimizar o efeito dessas perspectivas — o que não virá se evitarmos discutir o que deve ser discutido.
Parece necessário o esforço para recusar o medo oferecido pelo terrorismo — e alegremente administrado por líderes cujas ações são explicadas não raras vezes por analistas que bovinamente aceitam as regras impostas por esse jogo. “Não é o momento”. Creio que nós temos uma fixação quase patológica pelo medo. Nos agarramos a cada motivo para ter medo que se nos apresenta como se fosse uma questão de prudência considerá-los. Como se descartar algum deles ou esforçar-se por viver apesar deles fosse uma temeridade. Como se fossemos comandados por um mandamento: sejamos prudentes, tenhamos medo!