Fico estarrecido com certas figuras que, exibindo clara familiaridade com conceitos políticos, passam de considerações razoáveis (embora questionáveis aqui e ali) a conclusões desparatadas. Estava lendo o texto Lula, autêntico liberal e falso profeta, de Carlos Larreátegui (O Globo), quando me deparei com uma passagem expressiva — pois sintetiza sumariamente a opinião de muitos:
No plano internacional, Lula tem sido tudo, menos um democrata e defensor dos direitos humanos. Em nome do socialismo, tem justificado os atropelos e abusos de regimes como os de Cuba, Venezuela ou Irã descompromissados com a sorte de seus povos. Lula tem sido um no Brasil e outro muito diferente fora do país. Essa dupla moral é incompatível com o perfil de um autêntico líder e claramente debilita seu legado histórico.
Em síntese, Lula tem sido um grande presidente para o Brasil e um falso profeta para o mundo.
O texto todo parece mera figura para o fragmento acima. Se o comportamento do governo Brasil fosse guiado exclusivamente pela defesa dos direitos humanos, se não houvessem mais variáveis a considerar — sem desprestigiar a importância do tema –, que aliados ou parceiros restariam ao Brasil? Quem poderia ser apontado como democrata? Restaria alguém?
Cuba, Venezuela, Irã: a escolha dos paises denuncia traços ideológicos vendidos furtivamente. Por que não EUA, Israel, França, Rússia, China? Se os direitos humanos fossem o princípio diretor exclusivo da política externa brasileira, o EUA e seu endosso às ações genocida de Israel contra os palestinos, o deboche que se faz das resoluções da ONU há mais de 30 anos, passaria ilesos às críticas brasileiras? Israel também seria imunizado? A China, parceira comercial forte, seria duramente criticada pela proteção conivente aos seus parceiros na África? Penso, só pra ilustrar, particularmente no Sudão. E já que estamos nas imediações, por que não falar na ditadura da Árabia Saudita e das barbaridades que acontecem sob os olhos dos valiosos parceiros dos americanos? Seriam eles também alvejados? Alguém mais bem informado certamente poderia passar horas dissertando sobre pactos inconfessáveis tramados para salvaguardar relações econômicas interessantes, mencionando também a Rússia, Japão, Alemanha, Inglaterra — como agentes e atores nesse palco. Não é preciso tanto. Qualquer criança sabe que o mais entusiasmado defensor da democracia pode, quando lhe convém, fechar os olhos para as barbaridades de uma ditadura.
O Irã é certamente um país que abriga atos de intolerância e práticas que contrariam frontalmente as mais essenciais garantias dos direitos humanos. Mas será que, definido um quadro hierárquico de paises que representam ameaça aos direitos humanos, Irã, Cuba e Venezuela figurariam nas primeiras posições? Será que as ocorrências nesses paises, todos juntos, superam o número de absurdos que Israel promove diariamente em Gaza, com o apoio americano? Dificilmente. Isso pra ficar apenas em um exemplo. Quem estaria disposto a afirmar que esses três paises compreendem o que há de mais desafiador e absurdo na luta pelos direitos humanos? Só os mais fanáticos opositores de Lula — e de um certo pensamento de esquerda.
Mas permitam que eu me previna contra tipos que preferem desviar do centro da argumentação, se agarrando a possíveis brechas: tudo isso é uma declaração de desimportância da temática de direitos humanos? Não. Preocupações com violações de direitos humanos nos três paises mencionados devem ser descartadas? Não. O que se discute aqui não é nada disso. Apenas se quer fazer ver algo simples, que uma espécie de ingenuidade consciente ou dissimulada mascara: a política externa envolve um sem número de variáveis. Defender os direitos humanos é necessário, mas na prática uma defesa inexorável levaria o defensor ao isolamento. Na paradoxal configuração da política internacional, o democrata não necessariamente é um defensor ferrenho da democracia. Essas antinomias não esvaziam o conceito de democracia, mas apontam para sua plasticidade, ou melhor, para a precariedade da sua constituição na esfera supranacional. Nenhum país está disposto a sacrificar sua sobrevivência em nome dessa dimensão moral que só existe na cabeça de quem transporta a esfera nacional para âmbito internacional impunemente. Ainda está por construir a dimensão moral ou jurídica internacional, onde certos códigos tem validade e demarcam assim ações corretas e incorretas conforme seus parâmetros (e onde há instrumentos legítimos e eficazes de coação). Agir como se esse paradigma já existisse e vigorasse é apenas demonstrar ingenuidade ou confundir registros nitidamente distintos.
Na maioria dos casos essa confusão carrega algum propósito (ainda que obscuro), como as escolha nada ingênuas dos paises que exemplificam os constante violadores dos direitos humanos.
Pô Leonardo, sacanagem tua jogar no ventilador a premissa oculta: as impessoas (unpeople) da China, de Gaza e da Arábia não têm direitos humanos, pois não são….. pessoas – aos olhos estadunidenses e dos colonizados do mundo afora, é claro.
Baita post, cara. 🙂
Opa! Valeu grande Cesar 😀