Tentando esclarecer a seletividade do Supremo e do Ministro

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Nas últimas semanas muita gente entendida em Direito passou por aqui. O nível da discussão subiu e muitas questões vieram à baila. Porém, restou um desentendimento acerca do núcleo de problemas que eu abordei com os comentários sobre Gilmar Mendes.

A discussão que propus não envolve terreno estritamente jurídico. Não exige portanto nenhum domínio técnico. Em linhas gerais o que eu estabeleci foi uma relação causal entre decisões do Supremo, manifestações de ministros e políticos e o caso Daniel Dantas. Destaquei que questões adormecidas ganharam novo fôlego depois que passaram a interessar ao caso de um dos maiores agentes corruptores do história do país. Todos sabem que há figuras de variadas orientações políticas envolvidas, com o rabo preso com Dantas. Portanto deixem que eu esclareça: negar minhas conclusões significa identificar uma outra causa para o comportamento das autoridades. Não basta meramente destacar o cumprimento das regras, o processo, a própria norma e seu papel fundante — como é o caso da presunção da inocência. Não estou avaliando a tramitação do processo, nem desconsiderando a legitimidade das decisões. Mas para entender minha posição é preciso considerar que mesmo a mobilização legítima e as decisões bem fundamentadas podem ser alvos de críticas. Quando se confunde pretexto e causa, perde-se de vistas as intenções e interesses subjacentes. Se a origem do ritmo acelerado com que as altas cortes tem se manifestado contra supostas violações constitucionais pudesse ser identificado em outro ponto — e não no lastro do caso Daniel Dantas — talvez o próprio desenvolvimento institucional pudesse explicar os movimentos do Supremo. Vejam bem, não estou dizendo que não existiram decisões anteriores nesse sentido — claro que existiram. Mas é cinismo comparar com o ritmo desencadeado após a prisão de Dantas. Em todo caso, aqui fica o desafio: vamos botar na balança as manifestações posteriores ao caso e as decisões anteriores em favor do cumprimento de normas constitucionais, em prol de garantias individuais, e avaliar se temos razões para desacreditar todas as suspeitas que levantamos, enfim, para abandonar a relação causal que inferimos.

(Até porque, corrijam se eu estiver errado, a presunção da inocência vigora em nossa constituição desde 88: é muito tempo para se perceber a necessidade de se efetivar um princípio. Curioso que essa percepção tenha despontado justamente depois que a imagem do Supremo machou-se com as decisões de Gilmar, não é mesmo?)

É verdade que há formulações imprecisas, críticas indevidas e até certo apelo punitivista por parte de alguns, como bem anota Moysés, todavia, é ainda mais perigosa a crítica que no interesse de esclarecer o debate pensa que ele deveria se dar apenas no espaço técnico. Perde-se com isso a distinção entre o campo da legalidade e o da moralidade (ou eticidade). As normas jurídicas orientam a realização da justiça, é verdade. Por definição (as normas resultam de acordos), sem seus princípios não podemos alcançá-la. Mas nem por isso os campos se confundem: o que é legítimo pode bem ser mobilizado por interesses impróprios, sem ferir sua legitimidade. Só quando os dois campos são sobrepostos a discussão se encerra no domínio técnico, isto é, só quando se perde de vista que a legitimidade instaurada pode bem ter sido mobilizada no interesse particular, com o respaldo, claro, do interesse público, que é seu verdadeiro alvo. O resultado é somente um: o fechamento do debate no âmbito ético.

Por fim, não se trata de ímpeto punitivo nem inquisitorial, nem mesmo quando diz respeito ao que chamamos de execução penal provisória: é o simples e puro estranhamento diante do lapso de 20 anos das autoridades. É preciso entender que o princípio “ético” da presunção da inocência não é condenável, nem deve ser descartado, mas quando depois de longo sono ele desperta no justo tempo em que as figuras centrais do nosso mapa da corrupção estão na mira, não devemos simplesmente fechar os olhos e saudá-lo inadvertidamente. Não vamos converter dúvidas razoáveis em expressão de falta de cultura jurídica — não vamos confundir as coisas. Não devemos fechar os olhos, não nesse contexto. Embora eu tenha me detido na questão da execução penal provisória e no presunção da inocência, há muitos outros tópicos que, legítimos ou não, ganharam enorme repercussão desde do caso Dantas. Há o caso das algemas e o da inviolabilidade dos escritórios de advocacia, por exemplo. Desculpem a má palavra, mas quem é cínico a ponto de negar que problemas como o uso indevido de algemas existem no Brasil desde Cabral — até Maluf “sofreu” com ele — e quem é capaz de negar que esse foi um dos pontos questionados por todos os envolvidos na operação Satiagraha? Ou quem não sabe que a inviolabilidade que tentaram nos empurrar goela abaixo foi uma resposta à promíscua relação que alguns escritórios mantém com a nata da corrupção (ou mesmo da violência e do tráfico de drogas)? Tudo isso parece fichinha quando ouvimos o ministro que inventou um grampo inexistente e decretou uma crise institucional fantasma, o guardião da democracia, combatedor incansável do Estado Policialesco, pedir investigação — que há muito já se encontrava ativa — acerca da das invasões do MST. Quando o fizeram saber da atuação do Ministério Público, atuação que ele ignorava, pediu celeridade. A mesma celeridade que não tiveram as vítimas do massacre de  Eldorado dos Carajás. A mesma celeridade pela qual esperam mais de 50% da população carcerária brasileira. Depois estranham que as pessoas considerem que as ações de Mendes são interessadas.

Perdoem, ignorar esse aspectos não é manifestar prudência ou comedimento inerente aos bons conhecedores da lei — em oposição aos leigos –, mas confiar cegamente na lisura de gente sem credibilidade e esquecer a falta de dispositivos democráticos, nosso atraso institucional e político, para fiscalizar a conduta de tais figuras. Em alguns casos, é expressar conivência com comportamentos que, sob o espesso véu da legalidade, escondem as mesmas maracutaias e a falta de espírito democrático que grassa em nossas terras há séculos. É, acima de tudo, não ter entendido o argumento central das minhas críticas.

Atualização 1 – Banalização do garantismo penal, de um Promotor de Justiça em Minas Gerais.

Atualização 2 – Mais uma vítima salva pela redescoberta da presunção de inocência: Presunção de inocência: novo HC de Cacciola.

“Reúne todas as condições pessoais para responder em liberdade ao
processo, além de ter ocupação lícita e endereço fixo”, diz o HC, que
não tem pedido liminar, apenas de mérito. Segundo os advogados, se
estiver solto ele não comprometerá a ordem pública e econômica, a
instrução criminal e a aplicação da lei penal.

Reune, de fato.

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