Novidade e segurança

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Por acaso assisti ontem à noite a metade de “Um sonho de liberdade”. Brooks, antigo bibliotecário e Red, amigo de Andy Dufresne, enfrentam ao final o que eles denominam institucionalização. Após décadas confinados no presídio, a perspectiva da liberdade os assusta. Eu sempre tive comigo uma frase de Dostoiévski lançada a certa altura de Crime e castigo: “O homem é um canalha, acostuma-se a tudo”. Mesmo a liberdade pode ser aterrorizante para homens desacostumados à novidade, marcados pela rotina inflexível e esmagadora. A adaptabilidade é a chave da sobrevivência, mas ela tem um quê de sinistro. Por exemplo: viver, depois que pessoas queridas se vão, parece uma afronta ao sentimento, à estima que sempre que lhes dispensamos. No entanto é essa afronta a razão de continuarmos vivos. A segurança conquistada mesmo nas mais adversas circunstâncias, a estabilidade, é a base para qualquer ação, por isso a novidade e a perda de um ambiente familiar parecem tão intimidadoras — lembremos Arquimedes: “Dêem-me um ponto fixo e eu moverei o mundo”. (Há três pontos aqui, para que não haja confusão: o ponto fixo como metáfora para segurança imprescindível à qualquer ação, a adaptabilidade como esforço para criar o ponto fixo, esse ambiente familiar indispensável ao desenvolvimento, e finalmente a novidade como perda da segurança, do ponto fixo, como possibilidade aberta e não necessariamente previsível — e, portanto, assustadora).

A segurança é o solo sobre o qual o homem constrói sua morada. Todavia, a novidade, o desconhecido não inspiram somente repulsa. Ao contrário. Eles seduzem, aliciam e nos convidam a um ambiente novo. Sob a novidade se proteja então a expectativa: a esperança de felicidade e alegria em padrões inéditos, mas também o medo, a derrota, a perda do que se tem. O velho dilema é reeditado de tempos em tempos: a escolha entre a segurança conquistada, mas previsível, plenamente dominada, e as promessas do porvir, as possibilidades que ele reserva.

A frase “mais vale uma pássaro na mão do que dois voando” é uma verdade afetiva. O homem é um paquiderme emocional (nas palavras de Jurandir Freire), os lances afetivos portanto são onerosos e implicam mudanças frequentemente desagradáveis. O resultado é uma espécie de sedentarismo afetivo, a tendência a manter as relações congeladas e minimizar os movimentos a fim de diminuir o ônus. Essa imobilização cria um nível natural de rejeição à “liberdade”. Freud sem dúvida haveria de concordar: ela é um agente civilizador por excelência, na medida em que agrega ao invés de dissipar, mas ao mesmo tempo contrapõe o homem ao fluxo do tempo, à contigência das coisas. Inteiramente orientado segundo a expectativa de continuidade, o homem se vê desarmado para lidar com rupturas e fragmentações tão comuns ao curso da vida. Parece imprescindível aceitar, ou melhor, integrar à parte da nossa constituição emocional o exercício da abertura ao novo, estimular rupturas sistemáticas, para que as perdas e descontinuidades possam ser melhor recebidas. Digo isso como um melancólico diplomado, sujeito para quem toda perda é fragmentação do ser. Os melancólicos supradimensionam a resistência natural à mudança, agarram-se ao passado, ao familiar, relutam em aceitar novas condições na crença de que nunca recuperarão o que foi perdido. Nada será como antes.

Estou novamente diante de uma dessas condições. Tristeza e ansiedade se alternam em meu espírito. Ora as novas possibilidades parecem fantásticas, ora lamento a perda das velhas condições. Logicamente, lamentar é um despautério. Não há parâmetros, a novidade é sempre uma abertura, nunca uma substância ou um fato que se permita comparar. Só a substancialização do desconhecido, como pessimismo, justifica o medo. Portanto o melancólico é quase sempre um pessimista. De uma circunstância da qual nada pode ser dito, ele extrai o pior em nome de uma flagelação estrutural. Já escrevi sobre isso aqui no blog, mas não lembro o título do post. A acusação do melancólico contra si mesmo é a tentativa de restaurar internamente uma ordem externa que já está perdida. A novidade não pode ser dominada, na medida em que é uma abertura e uma possibilidade. Não há o que sentir e o que fazer, senão esperar que as coisas se acomodem e que se desenvolvam até o próximo estágio. A acusação melancólica restitui a segurança, ainda que pela dor. Os melancólicos, de todo avessos e resistentes à mudança, preferem a segurança do sentimento familiar da tristeza à deriva diante do desconhecido. Assim, eles reconstroem o ponto arquimediano e podem, instalados na tristeza familiar, lidar mais adequadamente com a situação. Mas o luto um dia precisa acabar. @@@

Escrevendo, lembrei de um conto do Somerset Maugham que com algum esforço oferece uma boa imagem. Trata-se de O zelador da Igreja (The Verger, na versão em inglês, em PDF). Por adversas que pareçam, as novas circunstâncias podem trazer boas novidades e redefinir nossos padrões de felicidade e contentamento — malgrado o hábito, o irmão mais velho da segurança e inimigo mortal da novidade.

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