Heloísa, porém, contabiliza em seu arsenal contra o projeto de Abelardo um argumento ainda mais sutil extraído de Santo Agostinho, do qual somos informados pelo próprio Abelardo. Depois de Pitágoras, conta-nos o autor de Cidade de Deus (Livro VIII), acostumou-se a chamar de filósofos aqueles que, aparentemente, ofereciam uma vida exemplar aos demais. A condição de amante da sabedoria resumiria a profissão do filósofo, de sorte que deveria devotar sua vida ao seu cultivo. Por essa razão Cícero (outro célebre exemplo para Abelardo) recusou a oferta de casar-se com a irmã de Hirtius. Não poderia ocupar-se ao mesmo tempo de uma mulher e da filosofia. Por essa exigência moral, mas interna à trama conceitual da obra, vida e obra se entremesclam. E Heloísa compreendeu que, já que pela concupiscência Abelardo havia obstruído o caminho de altar dos santos filósofos que, por via da abjuração do casamento pudesse ainda ascender ao oratório dos filósofos santos-pagãos. Não poderia então se perdoar por ter se permitido se casar com Abelardo, senão pelo seu próprio amor que nada desejava além de si mesmo – eis a natureza das intenções que ela pretende esclarecer. Quer dizer, não há fruto do verdadeiro amor que não esteja no próprio amor. Ela deve expiar o pecado de ter servido como artifício do demônio, pois a mulher é, sem exceção, a causa da perdição do homem e não haveria perdição mais grave para Abelardo do que casar-se. Portanto, o demônio arruninou pela continência o que não fora capaz de arruinar pela fornicação. Por ironia ou não, Heloísa faz ver a natureza de suas verdadeiras intenções, para mostrar o quanto estaria subordinada ao ideal de amor que aprendeu com o mestre Abelardo. No entanto, Abelardo concede provas de que ele foi quem menos viveu o que a ensinou, mesmo tendo sido demasiado discreto em relação às suas intenções. Afinal, ao deixar claro que pelo casamento pretendia garantir a fornicação, Abelardo mostra compreender Heloísa como um meio de satisfação de suas volúpias. Ou seja, queria Heloísa, não o casamento; desejava a satisfação de suas vontades, não a Heloísa. Ela sabe disso mais do que ninguém e, no entanto, sustenta o que entende ser o ponto axial de seu amor, o fato de jamais ter procurado nele algo além dele. É por isso que afirmará ser preferível ser a prostituta de Abelardo a ser a sua esposa, amante ou concubina: “o nome de esposa parece mais sagrado e mais forte, porém sempre preferi o de amante, ou, se me perdoares por dizê-lo, o de concubina e de prostituta.” Por um lado, o casamento faria com que tendo nascido para ser livre, Abelardo se aprisionaria; tendo nascido para a humanidade, passaria a pertencer a uma única mulher. Por isso Heloísa indagará, o que pensarão de mim os filósofos e a Igreja? Por outro, tudo é narrado pelos dois amantes como se o casamento consistisse em uma operação pela qual mulher e homem, a partir da negação do indivíduo, descessem às espécies de fêmea e macho.
As razões por que Heloísa tenta com argumentos sutis promover a desistência de Abelardo, por certo, deixariam qualquer solteirona feminista de cabelo em pé. Diriam umas: “Traidora!” Outras: “Infame!”. Mas não é de nos espantar, nem a Abelardo, que essa jovem seja capaz de se apropriar por si mesma das letras que conduziram as mãos de seu mestre aos seus seios. Mas por que o matrimônio se afiguraria tão repugnante assim, além do fato de ser praticamente impossível reunir as condições necessárias para um bom casamento? São Paulo responderá a essa questão dizendo que casado o homem serviria a dois senhores, a Deus e à sua esposa. Pelo casamento, marido e mulher passariam a pertencer-se mutuamente, de sorte que as obrigações matrimoniais se opõem a incessante oração que deve guardar um bom cristão. O marido deixa de ter poder sobre o próprio corpo, como a mulher sobre o seu e já que sexo e oração se opõem a rotina da oração do marido seria ditada pelos desejos libidinosos da mulher, a da mulher pelos do marido. A essência do estado matrimonial acarretaria, no esencial, a perda da própria liberdade. É justamente nesse ponto que São Jerônimo mostra concordarem Sêneca e o Apóstolo. Afinal, dirá o Sêneca de São Jerônimo que se o homem deve amar algo, que ame a razão, já que assim não seria importunado pelo sofrimento, seja de amar a mulher do próximo seja de amar a sua própria. Abelardo, tendo compulsado a obra de São Jerônimo, São Paulo, Sêneca e Teofrasto, resume a argumentação em uma forma lapidar e um tanto mais radical. Não há, aos seus olhos, servidão mais pesada e estreita do que a do par conjugal. Afinal, qual servidão seria mais insuportável para um homem do que aquela por que ele deve deixar de ser senhor de seu corpo? Decerto, não há nada de mais pesado para suportar debaixo do Sol do que ser cotidianamente vítima das preocupações causadas por uma mulher e filhos. Uma vez que é impossível servir a dois senhores, o homem não deve se casar. O vínculo marital com uma mulher o impediria de se dedicar à filosofia – dirá Abelardo, retratando a argumentação de sua amada. De um lado, os livros. De outro, a mulher. De um lado, o prazer. De outro, a sua completa negação. E sob qualquer perspectiva o casamento é mais um fardo a ser suportado – um remédio aos incontinentes – do que um prazer. O matrimônio lança nas mãos do marido ou a tarefa de manter aquilo que o mundo inteiro cobiça ou o aborrecimento de conservar algo que ninguém deseja. Por conta disso, dirá Teofrasto, que o filósofo, em vez de contrair matrimônio, que tome um bom criado.