Campanha pró-Dantas

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Há uma mobilização incrível contra os envolvidos na realização da operação Satiagraha. Leituras desparatadas invertem a ordem das prioridades, tomando como centro do relatório policial aspectos estilísticos ou gramaticais — em detrimento da consistência que deveria ser o critério de avaliação primordial, senão o único. Agora — ou melhor, mais uma vez — o juiz Fausto de Sanctis é alvejado. Repito as perguntas: a quem interessa enviesar o foco da notícia? Enfatizar, não o corruptor acusado de crimes financeiros, mas os agentes da sua prisão e das investigações contra ele?

A todo instante novos artigos e “notícias” veiculam irregularidades nas investigações e no procedimento processual. Artigos tecnicamente impecáveis — e por isso mesmo nocivos. Cobrem, sob o opaco véu da tecnicidade, aspectos simbólicos e políticos que desempenham papéis fundamentais no desenrolar do caso. Vejam como a questão é sofisticada:

Afirma-se que o juiz Fausto De Sanctis recusou-se a prestar informações ao STF. O juiz alegou que a quebra do sigilo poderia comprometer a investigação. A matéria destaca a revogação de uma regra que condicionava o acesso ao inquérito, por parte dos advogados de defesa, a autorização judicial. Parece justo, pois a ampla defesa é um princípio constitucional (escrevi isso antes de tomar conhecimento do artigo que aparece na segunda parte, que desfez minha opinião). Mas há um domínio que é convenientemente omito pelos técnicos que avaliam a posição do juiz, ou pelo menos parcialmente omitido.

No ano passado, o CJF revogou a regra que condicionava o acesso do advogado aos autos de inquérito sob segredo de Justiça à autorização de um juiz. A jurisprudência do STF sobre o tema caminha na direção de permitir o acesso a todos.

Vejam essa notícia de hoje, sobre o preocupadíssimo senador Heráclito Fortes:

Acusado de ligações com o sócio-fundador do Banco Opportunity, Daniel Dantas, e citado nos grampos telefônicos da Operação Satiagraha, da Polícia Federal (PF), o senador Heráclito Fortes (DEM-PI) pediu hoje ao Supremo Tribunal Federal (STF) para ter acesso à íntegra do inquérito. O pedido será analisado pelo presidente da Corte, o ministro Gilmar Mendes.

Entre o que reza a lei e o que pratica a jurisprudência há um espaço inegável — já insinuado pela própria matéria e confirmado pelos trâmites do próprio STF (onde há concessão, não há livre acesso). As medidas de proteção não visam suprimir direitos constitucionais, mas impedir a ação corruptora. Daniel Dantas tinha a intenção de corromper os envolvidos na operação — tem poder econômico pra isso, além de notória influência política. O deferimento do pedido de habeas corpus mostrou que os receios que eram vazios, os recursos para proteger a investigação se esgotaram. Sem a possibilidade de manter o sigilo, restava à prisão temporária o papel de obstruir as possíveis ações de Daniel Dantas no sentido de atrasar a investigação. Ao deferir o HC, o ministro Gilmar Mendes concedeu uma espécie de salvo conduto para que o acusado apagasse suas pegadas. Sem o sigilo, com acesso irrestrito a todas as etapas do inquérito, cada novo passo poderia ensejar uma ação antecipada por parte de Daniel Dantas, a fim de destruir aquilo que fosse necessário para dar força a uma pista anteriormente colhida. Para um corruptor em potencial, ter acesso a determinadas partes do inquérito é como ter pleno conhecimento do roteiro da investigação. É isso o que as brilhantes opiniões técnicas simplesmente ignoram. Na defesa intransigente “do Estado de Direito”, as vias de proteção do inquérito são dissimuladamente esvaziadas. No final, quando não houver o que fazer, a culpa será dos delegados envolvidos e do juiz De Sanctis. Escrevam o que eu digo!

Aliás, surpreende essa paixão repentina pelo Estado de Direito. Quando o filho de Maluf foi algemado pela Polícia Federal, não se ouviu tamanha indignação. A afronta cotidiana aos direitos humanos estampada no sistema penitenciário, não parece inspirar maiores preocupações (e não é de hoje) — embora alcance não apenas uma pessoa, mas centenas de milhares.

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Uma amiga afirmou que a decisão sobre o caráter sigiloso do inquérito não é determinante como quer a matéria do Conjur. O juiz pode, justificadamente, manter o sigilo imposto pelo delegado. O que há, sim, é uma orientação em favor dos réus (garantista, segundo ela). Mas não é uma orientação obsoluta (artigo do Código Processual Penal):

Art. 20. A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.

Lendo um artigo do juiz Antonio José Franco que ela me sugeriu, no site Just Navegandi, percebi que as omissões são ainda mais importantes para pintar o retrato do juiz De Sanctis do que eu havia imaginado:

Em sendo o inquérito policial um procedimento inquisitivo, não há de se falar na aplicação nesta fase das garantias do contraditório e da ampla defesa, destinadas a instrução processual, pois só aí existe acusação e defesa, no caso, a partir do recebimento da denúncia, já que, em se tratando de investigação criminal ou inquérito policial, só se fala em suspeito ou indiciado, não abrangendo essas garantias constitucionais o inquérito policial, que se caracteriza por um conjunto de atos praticados por autoridade administrativa, não configuradores de um processo administrativo.

O juiz indica boas fontes que partilham essa leitura. E continua:

Assim, pode-se falar em defesa no inquérito policial em sentido amplo, mas não em ampla defesa, atuando o advogado para assegurar a observância dos direitos e garantias individuais previstos na Constituição da República.

Quanto ao sigilo da investigação, é ele da essência do inquérito. Não guardá-lo é muita vez fornecer armas e recursos ao delinqüente, para frustrar a atuação da autoridade, na apuração do crime e da autoria.

Será que é o caso? Não, Daniel Dantas jamais faria. Nós não temos indício para afirmá-lo! Fazê-lo seria uma temeridade! E ainda:

Tal procedimento [o sigilo nas investigações, ou, como ele chama, a restrição do princípio da publicidade] é coerente com a característica inquisitiva do inquérito policial em que não se exerce defesa propriamente dita, vetando a possibilidade de conhecimento prévio da diligência a ser empreendida oportunamente (mandado de busca e apreensão, de prisão temporária, preventiva), que poderia ver-se frustrada em decorrência de uma possível atuação precoce e ágil do advogado do suspeito ou indiciado.

Eu já havia notado essa possibilidade, mesmo sem conhecer a interpretação que dá margem às restrições que visam eliminá-la. Ao final, é revelado o estatuto da “regra revogada”: uma orientação passível de fortes objeções:

Admitir que não pode mais existir o sigilo na investigação criminal nos termos da legislação processual penal após o preceituado no EOAB, é entender equivocadamente que se aplica ao inquérito policial as garantias do contraditório e da ampla defesa ou de que o art. 20 do CPP teria sido revogado pelo EOAB, o que vai de encontro à característica inquisitiva do inquérito policial que não admite a bilateralidade da audiência e à lógica da investigação criminal. (…) Qualquer entendimento em contrário certamente contribuirá para que a investigação criminal se torne uma falácia, que ao longo do tempo vem gradativamente sendo inviabilizada, comprometendo o exercício do jus puniendi do Estado por não se permitir a colheita célere dos elementos necessários à propositura da ação penal (ex.: derrogação do art. 241, do CPP, pelo art. 5º, XI, da CF), prestigiando o delinqüente em detrimento do Estado que se movimenta em prol da sociedade, do bem-estar da coletividade ou seja, fomentar a certeza de uma possível impunidade em decorrência de mecanismos burocráticos que virão retardar a prestação jurisdicional, em nome de uma suposta e contraditória falta de credibilidade dos agentes públicos que atuam em nome do próprio Estado-Administração.

Impunidade, finalmente ela, a palavra chave. Considerando que as palavras de Daniel Dantas são dinamite para oposição e situação, não é de se estranhar a mobilização de “mecanismos burocráticos que virão retardar a prestação jurisdicional”.

Acrescento minha opinião: os princípios e as leis estão a serviço dos fins a que se propõem e não podem ser brandidos absolutamente, como se o respeito cego a eles pudessem garantir os resultados que interessam a ordem pública. O Direito, até onde vai meu parco conhecimento, não é um todo inteiramente consistente. Assim, reafirma-se o papel do juiz, como agente interpretador, indispensável, para intermediar a relação entre o texto e o interesse público. O caráter absoluto de algumas prescrições serve, às vezes, para mascarar a má-fé de pessoas interessadas em esconder-se.

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