O alto preço da irracionalidade

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O trânsito é um sistema complexo. É certo que a velocidade que imprimimos ao veículo é um dos fatores que constituem esse sistema. É verdade também que há certas regularidades e padrões no fluxo de veículos que interferem no tempo gasto no percurso de uma rota e que, portanto, podem ser considerados no cálculo da expectativa do tempo gasto para perfazê-la. No entanto, esses fatores dimensionáveis não desfazem uma verdade patente: um motorista, como um dos fatores que compõe o sistema, não pode determinar o tempo necessário para percorrer um caminho. Pode, obviamente, fazer uma estimativa, considerando padrões que servem de pressupostos — mas fazer uma estimativa considerando pressupostos não é base para nenhum cálculo determinante de ganho! O fato de termos percorrido um caminho em menor tempo do que o habitual porque imprimimos maior velocidade ao veículo não altera o conclusão de que isso é mera contingência. De que, quando isso acontece, somos apenas alvos da sorte. Na minha opinião, não há o menor resquício de objetividade em acreditar que se pode controlar fatores incontroláveis. Quando um motorista acelera assim que o sinal permite e ignora a travessia de um pedestre, quando desenvolve mais velocidade, ele tem a impressão irracional de que isso resultará em algum ganho. Admito sem a menor reserva que a velocidade do veículo altera a configuração final do sistema, mas é impossível — a menos que se controle os fatores externos — determinar ganhos ou perdas sem conhecer a influência dos outros fatores nesse cálculo. Age irracionalmente o motorista que acredita poder determinar algum ganho aumentando a velocidade do veículo. Os proprietários de Ferraris, por exemplo, sabem bem que, nas grandes cidades, sua potência é quase reduzida ao inútil. Salvo pela grande aceleração, eles não têm condições de desenvolver grandes velocidades pois o carro está condicionado pelo ritmo lento das pistas urbanas. Mais uma vez, se afirma a complexidade de um sistema como obstáculo a determinação de ganhos. Permitam um último e maçante argumento, para encerrar o aspecto lógico da minha argumentação. Como a velocidade do carro é um dos fatores, é óbvio que se o motorista decidir andar a baixas velocidades ele conseguirá determinar com mais precisão o tempo do seu percurso a medida em que se aproximar do repouso. Um motorista parado sabe que nunca chegará a sua meta. Essa caricatura serve apenas para ilustrar que a determinação possível para um dos fatores é apenas negativa, nunca positiva.

Bem, o que me interessa nesse caso são as consequências do ato irracional. Confesso que eu hesito antes de escrever uma demonstração pormenorizada sobre um aspecto que em geral as pessoas não costumam prestar atenção. Mas eu trairia minha natureza se não o fizesse. Sou chato, arrogante e tantos outros predicados que injustamente me atribuem porque faço questão desse fundamento que a maioria dispensa. Há pouco mais de uma semana enterrei um amigo, morto num acidente de trânsito. Meu bairro inteiro se comoveu. Encontrei no cemitério pessoas que há tempos não vejo. Tudo isso porque alguém decidiu que poderia ganhar algum tempo violando os limites de velocidade. É uma dupla irracionalidade. A primeira, relativa a impossibilidade que demonstrei de se determinar ganhos num sistema complexo sobre o qual não temos controle de seus fatores. A segunda, referente a violação dos limites de velocidade e da inobservância das regras de trânsito, e da ignorância do papel organizador que cumprem, permitindo que o fluxo de veículo ganhe um ordenamento previsível e desse modo escape a contingência que certamente produziria muitas vítimas. Aliás, esse é um exemplo prático, e trágico, do modo como a arbitrariedade e o desrespeito as normas de trânsito produzem consequências nefastas. Perdoem, meus caros leitores, se sou cansativo na demonstração dos meus argumentos e se lhes empresto as cores mortas de um cálculo, mas não estou disposto a enterrar mais amigos, familiares, e nem a consentir com a morte de qualquer um que seja, para não desfazer o conforto com que alguns insistem em conduzir suas vidas segundo motivações irracionais. Eu tenho constantes dúvidas sobre o valor da filosofia, ao ponto de me expor a alcunha de pragmatista ou coisas do gênero, contudo, diante desses episódios e da busca constante pelo fundamento que é uma das características da filosofia, eu sinto renovada minha intuição no seu valor. Quem ainda não compreendeu a dimensão do meu argumento talvez me repreenda por fazer de um tema tão delicado a fonte de uma reflexão (pretensamente) filosófica. Perdoem-me mais uma vez, mas o caso é que eu não consigo separar esses dois elementos. Não consigo dissociar a morte de meu amigo da ação irracional e irrefletida que a provocou. Não consinto com uma cultura anti-intelectualista que vê em todo gesto de sofisticação uma atitude perdulária e dispensável. Morrerei antes de admitir que o homem deve dispensar o uso crítico da razão, e que a omissão desse uso deve ser naturalizada. Eichmanns, foi tudo que produzimos dispensando a crítica, alinhando-nos a atitudes meramente automatizadas e irrefletidas. Eu não estou disposto a poupar quem quer que seja da imputação que cai sobre todo homem que deixa de usar a razão para me preservar das críticas ou das simplificações com que os preguiçosos costumam se defender da exigência da atividade racional. Não pagarei esse alto preço! Não paguemos!

PS. Não quis fazer da referência ao meu amigo um relato das minha emoções — quem já perdeu amigos e pessoas com quem se conviveu durante algum tempo pode entender a situação pela mera alusão — mas um ponto de reflexão sobre a consequência de certa condutas. O que eu proponho é que, se a simples atividade crítica e o uso da razão não convencem por si mesmos, consideremos ao menos a consequência que a ausência deles provoca. Ela é menos abstrata do que querem alguns.

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