Comentários à doutrina da lei natural

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No blog de Rodrigo Constantino, comentei a doutrina da lei natural que está exposta na resenha que ele faz de um livro de Murray Rothbard. É importante ler o post para entender a discussão. No final do debate, não consegui postar meu último comentário, pois ele estava muito grande, resolvi então colocá-lo aqui. Ele traz um sumário da minha objeção à doutrina. Começo respondendo à última colocação de Rodrigo na caixa de comentários:

Vc diria que, epistemologicamente falando, não existe uma verdade ABSOLUTA?
Pense antes… afirmar isso SERIA constatar uma verdade absoluta!

Meu comentário não publicado:

Rodrigo,

O que você está me apresentando é um paradoxo, não uma demonstração de que existem verdades absolutas. Um paradoxo, aliás, fartamente documentando e transformado em anedotas de todo tipo. Ele pode ser melhor representando da seguinte maneira: o enunciado “esta afirmação é falsa” será verdadeiro se, e somente se, for falso. Podemos formular o paradoxo com os termos da sua frase: o enunciado “não existe verdade absoluta” só será verdadeiro se, e somente se, for falso.

Isso não demonstra coisa nenhuma, tampouco tem relação com a questão epistemológica que eu levantei. (A epistemologia investiga se é possível conhecer e se o conhecimento pode ser justificado, a lógica cuida das condições formais da verdade. Para a lógica há enunciados absolutamente verdadeiros, as tautologias, mas elas não dizem nada sobre o mundo, logo não podem se afirmar como conhecimento, veja: “Chove ou não chove” — para qualquer condição do mundo essa afirmação será verdadeira, porque ela cobre todas as possibilidades). Vou resumir minha objeção a lei natural: (1) O autor tentou livrar a ética do relativismo formulando uma fundamentação que pudesse reivindicar um status definitivo, para isso ele recorreu a natureza. (2) Mas como é possível “apreender a lei natural”? Apreende-se observando o homem? (Se é um conhecimento, tem que passar pela experiência, precisa de alguma “base empírica”, do contrário, é metafísico, mas o autor refuta o apelo religioso como fundamento para sua doutrina, segundo suas palavras)

Se observarmos um homem e verificarmos que há algo nele que possamos representar como lei natural, estamos autorizados a levar esse caso observado a condição de lei natural, válida pra TODOS os homens? Se observarmos um bilhão de homens e verificamos que há algo neles que possamos representar como lei natural, estamos autorizados a levar esses casos observados a condição de lei natural, válida pra TODOS os homens? Se observarmos TODOS os homens que já nasceram e viveram no planeta Terra e verificamos que há algo neles que possamos representar como lei natural, estamos autorizados a levar esses casos observados a condição de lei natural, válida pra TODOS os homens? Isto é, para todo e qualquer homem que tenha vivido e que possa viver um dia, sem excessão? Não! Essa passagem de casos observados para TODOS os casos possíveis é injustificada, não tem o menor respaldo lógico. Veja como é simples

Todo (a) homem é mortal
Sócrates é homem

(b) Logo, Sócrates é mortal

Observe como o termo médio (a) articula os outros termos de modo a garantir a relação entre eles estabelecida na conclusão (b). Se você aceita a verdade das premissas, é necessário que a conclusão seja verdadeira, isto é, não pode ser outra coisa, não pode haver outra conclusão que não implique em contradição. Agora veja o argumento necessário para que se realize a “apreensão da lei natural” que fundamenta a doutrina

Caso 1 João apresenta um traço que se assemelha a uma característica natural
Caso 2 José apresenta um traço que se assemelha a uma característica natural
Caso 3 Miguel apresenta um traço que se assemelha a uma característica natural
Caso 4 Maria apresenta um traço que se assemelha a uma característica natural

Caso 162.209.148 Godolfredo apresenta um traço que se assemelha a uma característica natural

Concluimos que em todos os casos observados um traço semelhante a uma característica natural se apresentou, logo há uma lei natural.

Note como os casos são isolados e não se relacionam nem entre si, nem com a conclusão — aliás, a conclusão não é nada mais que formulação arbitrária ou a introdução de uma cláusula (ad hoc) ceteris paribus. Todas as premissas podem ser verdadeiras e no entanto a conclusão pode ser falsa sem que isso implique em contradição.

A lei natural nunca pode ser demonstrada, nenhum conhecimento pode (consequência do problema da indução, de Hume, aqui esboçado grosseiramente). Portanto a doutrina da lei natural não pode produzir o fundamento necessário à derivação ética. Ele cai antes mesmo de ter se posto de pé.

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