Razão e Religião

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Durante a Copa de 2006 li um artigo de um jornalista inglês entre suspiros e bocejos. Abrigado pelo The Guardian (ou The Independent, não lembro), audiência e comentários estavam assegurados. Ali brasileiros se esmeravam no interesse da preservação da imagem pátria, abalada menos pela força das considerações do que pela fé depositada na autoridade de um jornalista aceito entre os colaboradores de um grande jornal britânico. Tudo muito comum e costumeiro! Entre os comentários, porém, li a resposta de um comentarista inglês (eu suponho) a um comentário precedente de um brasileiro. O seu conteúdo era algo semelhante ao seguinte: “Só mesmo um sujeito pertencente a um país dominado por crenças e superstições poderia dizer tal coisa”.

É evidente que não me intrometi num debate que já havia alcançado esses termos, mas fiquei seguramente desconsertado pela inconsequência do argumento e também porque, por trás do intuito de desarticular o argumento alheio pelo reconhecimento de uma qualidade inegável, havia uma relação entre atraso e religião que possuia seus encantos.

A menos que se aceite com antecedência o caráter negativo de crenças e superstições, é temerário atribuir a tais fatores o papel de agentes retrógrados. Sou da opinião de que de fato tais aspectos culturais assumem quase sempre essa função, contudo, tal estado de coisas resulta de uma configuração histórica e não de uma qualidade que se possa atribuir impunemente, sem maiores considerações. Por que laços a crença vincula-se ao atraso que alguns querem como consequência de sua aceitação? É razoável pensar o contrário: as formas de religiosidade são alternativas racionáveis, estratégias de defesa, contra os atrasos que cortejam desde sempre a maioria dos homens. Não se trata de um apologia à religião e sim da constatação de que a adesão religiosa é menos arbitrária do que parece. Nietzsche, em Genealogia da moral (salvo engano), lembra que o sofrimento não é por si só insuportável, mas o que nele nos revolta é sua falta de sentido. E eis aí um belo pretexto para as fabricações da credulidade. A fé dota de sentido a contrariedade da circunstância histórica e torna mais branda a forma das humilhações cotidianas. Tantos autores desde Nietzsche e seus antecessores desenvolveram a tese segundo a qual a fé é uma estratégia racionalmente compreensível (embora nem por isso menos justificável, posto que exige a aceitação das condições vigentes), atribuindo ao atraso, a pobreza e a miséria a oportunidade propícia (causa) para o seu florescimento.

Quando um homem são tropeça e a queda é sem consequências, qualquer um sente-se livre para rir da falha, mas mesmo um homem sem escrúpulos sente uma forte censura quando vê alguém cair por conta de um deficiência física. Não porque a deficiência os invalide, mas por uma espécie de respeito pelo obstáculo que lhes foi imposto não por distração ou por qualquer outra disposição temporária, mas pela definitiva inscrição natural. Se essa imagem pode explicar a censura que se opera sobre nós quando reconhecemos a contrariedade das condições, o que explica esse riso desrespeitoso que acusa alguém de pertencer a uma classe (a de crentes e supersticiosos) cuja existência se deve razoavelmente tributar às adversidades históricas que cruzaram séculos sem que fossem mitigadas? Uma resposta possível talvez seja a espécie de individualismo que viceja em nossa cultura. A falta de responsabilidade pelos rumos que toma a ordem humana, a crença cega na autoridade e na regulação política e econômica. Como um escravo que se gaba por pertencer a um patrão abastado.

Que um homem não reconheça condições mínimas para realizar pelo exercício da razão as transformações necessárias para que sejam atendidas suas necessidades mais elementares e por isso escolha aderir a uma espécie de pensamento balsâmico parece justo, embora reconheçamos que não é o preferível — não se deve esperar que os homens sacrifiquem suas vidas em lutas desiguais. Que homens providos de suas necessidades escarneçam daqueles que não têm a mesma sorte parece algo bizarro! Que não tenham sequer a decência de esboçar uma leitura mais detida, parece o indício do grave esgarçar dos laços entre os homens, do enfraquecimento da política, da idéia de comunidade que desde o início dos tempos tem nos resguardado, ao menos como intuito, da força desregrada da natureza. A fraqueza conduz à resignação e este talvez seja o signo da religiosidade ou de sua função ideológica comum na maioria dos períodos históricos, porém, pior do que a fraqueza de resignar é a covardia e a ignorância que se escondem sobre os ombros da força, da autoridade e do sucesso. Em termos de dignidade humana creio que qualquer um gostaria de ter nascido inglês, ou alemão, mas como não nos cabe escolher nossa nacionalidade, não podemos, para o bem ou para o mal, reivindicar o sucesso e a força representadas na cultura e instituições do nosso país como qualidades dos seus nacionais — tal pensamento se aproxima do programa nazista.

Por fim, não se trata de uma crítica particular, mas de uma análise que apenas se serve da particularidade para examinar o descompromisso que tem regido as relações humanas, não pelo desejo consciente de ferir e sim pela indolência aliada a eficácia com que os mecanismos de conservação tem silenciado as tentativas de fomentar o desenvolvimento da consciência crítica, e explicar por esses termos a ascensão do invidivualismo pretensamente racionalizado, bem como a racionalização da fé que sobretudo com Nietzsche tem explicado a atuação psicológica destes mecanismos.

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