Duas coisas nesse post: um comentário breve sobre a impressão de um conto de Cortázar, seguido de um fragmento dele e uma sugestão adorável.
Nunca compreendi por que vias indivíduos e grupos se assemelham, malgrado as diferenças que lhes imprime a diversidade geográfica, cultural, valorativa, enfim, o feixe de fatores que trabalha para dotar de singularidades os sujeitos de cada região do planeta de acordo com aspectos relativos a sua cultura e seu tempo. Surpreende que se possa identificar padrões: nos grupos de amigos certos tipos são quase necessários, o extrovertido, o acanhado, o idealista — é difícil, porém, acreditar que tais rótulos possam de fato oferecer traços que não sejam vagos, pelos quais se possa identificar seu tipo num grupo inserido em outro contexto cultural. É o que Cortázar faz. Aliás, Barthes já nos havia feito notar (como tanto outros bons críticos) a habilidade dos grandes escritores para mobilizar aspectos íntimos do leitor, para nos cantar. Abaixo um fragmento sobre a personalidade de um personagem que talvez seja familiar também para vocês:
A veces me pregunto por qué te molestás todavía en venir a visitarme. Te embarrás los zapatos, te aguantás los mosquitos y el olor de la lámpara a kerosene… Ya sé, no pongas la cara del amigo ofendido. No es eso, Mauricio, pero en realidad sos el único que queda, del grupo de entonces ya no veo a nadie. Vos, cada cinco o seis meses llega tu carta, y después la lancha te trae con un paquete de libros y botellas, con noticias de ese mundo remoto a menos de cincuenta kilómetros, a lo mejor con la esperanza de arrancarme alguna vez de este rancho medio podrido. No te ofendas, pero casi me da rabia tu fidelidad amistosa. Comprendé, tiene algo de reproche, cuando te vas me siento como enjuiciado, todas mis elecciones definitivas me parecen simples formas de la hipocondría, que un viaje a la ciudad bastaría para mandar al diablo. Vos pertenecés a esa especie de testigos cariñosos que hasta en los peores sueños nos acosan sonriendo.
Estes fragmentos fazem parte de “Relato con un fondo de agua”, conto presente no livro Final del juego. (Se quiserem baixar o livro inteiro, cliquem sobre a imagem dele acima) O trecho acima descreve com cuidado a personalidade de um tipo bastante familiar. No seguinte Cortázar reune condutas e pensamentos que não podem provocar outra coisa senão o riso constrangido. Desisto de qualquer comentário, limito-me apenas a sugerir que vocês examinem se por acaso ele lhes diz alguma coisa:
Éramos tan jóvenes, Mauricio, resultaba tan fácil creerse hastiado, acariciar la imagen de la muerte entre discos de jazz y mate amargo, dueños de una sólida inmortalidad de cincuenta o sesenta años por vivir.
Eu tenho muita coisa perdida nas milhares de referências do bookmark do meu Firefox. Procurando o fragmento do conto que acabo de citar reencontrei um saite fabuloso que agora sugiro pra vocês e que há tempos jaz adormecido entre os meus favoritos: Librodot.com. É um saite delicioso especializado em livros em espanhol. É fácil encontrar por lá milhares de títulos de autores como o próprio Cortázar, Borges, Ortega y Gasset, Bioy Casares, Horário Quiroga. Infelizmente alguns outros fazem falta, Sábato, Victoria Ocampo, Alejandra Pizarnik, mas figura ali o mestre Macedonio Fernández, que pelos sussurros que trazem minha memória traiçoeira foi um guru de Borges. Há também muita coisa traduzida, como o Pavese que pelo que me consta tem poucos livros traduzidos para nossa língua.
É lamentável que não tenhamos entre nós uma iniciativa como essa — ou pelo menos que eu conheça. Decerto se alguém tivesse seria logo combatida pelos interessados na comercialização dos livros. Não se pode fazer muito além de lamentar, até porque, há alguns entraves para o pleno desenvolvimento do mercado editorial por aqui, além da precariedade da cultura de leitura. Bem, fica aí a dica, espero que gostem, usem e se possível, doem. Juro que se dispusesse de algo no meu parco orçamento doaria.
PS. Descobri que o Flickr pode ser uma matriz interessante de fotos ilustrativas. Doravante passarei a ilustrar meus posts com imagens extraídas de lá.