Fundamento das relações duradouras

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Já por duas vezes rescrevi um texto intitulado Responsabilidade Social. É curioso como o tempo e a cultura nos concedem um aprimoramento de natureza tão peculiar que podemos com ele, num só lance de vista, identificar o núcleo de uma matéria em exposição e, por consequência, também os excessos cometidos no seu desenvolvimento. Sinto que poderia reduzir todo meu texto, com prejuízos aceitáveis, a um simples parágrafo:

O termo responsabilidade social dissimula por trás da conotação carregada de sentimentos e expectativas humanos, instaurado pelo uso que se faz destas palavras, a fria articulação de interesses, o cálculo autonômo para o qual os vínculos entre os homens é mero saldo — meio pelo qual se atinge um fim que está, e precisa estar, escamoteado sob o véu de boas intenções.

Daí o apelo à imagem dos autômatos. Mecanismos para os quais os fins devem ser traçados com antecedência e objetividade e cujos meios têm geralmente lugar inteiramente secundário (embora a tecnologia recente produza robôs cada vez mais sensíveis as variações de ambiente; essa sensibilidade, contudo, deve ser orientada com antecedência e a possibilidade de criação de novas variáveis que se adaptem a ambientes desconhecidos está condicionada a prévia programação de um algoritmo que realize essa função).

A humanidade mostra-se algo inteiramente diverso na medida em que parece fundada na tentativa de equacionar meios e fins. Se dispuséssemos nossos propósitos à frente dos meios que nos conduzem a eles, em algum momento experimentaríamos o estado que Hobbes denominou Bellum omnium contra omnes (guerra de todos contra todos). A civilização oferece-nos o ponto de agenciamento de interesses pelos quais sacrificamos algumas de nossas pretensões em prol da segurança e da manutenção ordeira da vida comum. Mas talvez os robôs, numa hipotética comunidade de robôs, pudessem ser programados para considerar as diferenças e propósitos de cada um dos componentes da comunidade de sorte a fazer coexistir pacificamente cada uma deles. Pois bem! Mas se pudéssemos dispor de todos os nossos interesses, vontades e desejos com antecedência com que um robôs dispõem dos seus argumentos e comandos, talvez imaginássemos uma saída igualmente simples para os conflitos humanos. E no entanto não temos a impressão de que a mais viva imagem de nossa natureza está representada na impulsividade e inconstância que nos assalta? O caráter original e autônomo dos nossos apetites e humores jamais pode ser reduzido a um mero feixe de interesses previamente coordenados (ainda que possamos admitir que a orientação desses interesses tenha algum peso filogenético). Aqui se insinua o elemento que me interessa: qual é então o fundamento das relações humanas, quer dizer, dos laços duradouros que têm preservado, ainda que de maneira precária e até bárbara, a coerência da civilização? E por que esse fundamento não pode ser entendido como mera articulação de interesses, tal como insinuo no texto sobre Responsabilidade Social?

Minha opinião a esse respeito é inteiramente derivada de um leitura de teoria psicanalítica, mais precisamente, do livro Psicologia de grupo e a análise do ego (1921), portanto meus erros possíveis devem ser creditados a minha incompetência exegética ou a insuficiência da teoria freudiana no que respeita ao exame dos fenômenos sociais e antropológicos. Na pior das hipóteses, aos dois casos. De toda sorte, a posição de Freud parece imensamente estimulante e de longo alcance e isso já basta para que a ela prestemos alguma atenção. Os interesses comuns não bastam para salvaguardar uma relação que se pretenda duradoura, assim pensa Freud, tão logo cessem esses interesses, desfaz-se também o lastro sobre o qual a relação se funda. Nada definitivo pode assentar sobre um solo tão inconstante. As relações embora sejam quase sempre animadas por interesses partilhados, são, contudo, preservadas por vínculos libidinais oriundos da convivência regular a que estão expostos os componentes da relação. O ego narcisista rejeita tudo que é diferente (“Narciso acha feio o que não é espelho”) e, nas palavras de Freud, “o amor de si só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos“. Assim, a longevidade pretendida deve estar ancorada num laço emocional e este laço se constitui às expensas da repressão das tendências narcisistas. Ele escreve ainda: “Só o amor atua como fator civilizador”. Deve estar claro que a noção de amor aqui não se confunde com a maçante idéia romântica largamente divulgada pelas produções culturais do nosso tempo — ela compreende também o amor inibido na sua finalidade que dá origem a amizade, ao amor entre homens, etc — e que, mesmo dito isso, o conceito parece ainda exigir uma descrição da qual não me ocuparei aqui. Em todo caso, fiquemos mesmo com essa idéia geral que aqui nos oferece danos mínimos para compreensão do programa de Freud. É observado também que nas relações mais elementares, como entre homens e mulheres, pais e filhos, só a sedimentação da hostilidade e aversão pode conservá-las durante um longo tempo. Isso imediatamente me fez lembra de Cioran, numa passagem que penso já ter citado aqui:

O conhecimento arruína o amor: à medida que penetramos nos nossos próprios segredos, detestamos os nossos semelhantes, precisamente porque eles são parecidos conosco. Quando deixamos de ter ilusões sobre nós próprios, não as conservamos também acerca de outrem.

E. M. Cioran, História e Utopia

Como se o tempo fizesse relaxar os mecanismos de repressão responsáveis pela contensão da hostilidade que impediria a manutenção do relacionamento. Bem, retomando a exposição: talvez seja o mecanismo de identificação o agente da preservação das relações. Minha interpretação, grosseira ou reducionista, entende que a identificação não é um investimento libidinal num objeto, mas no próprio ego, por isso, oferece maior resistência as flutuações dos interesses. O objeto da identificação é internalizado e assim se resguarda a integridade dessa relação. Para Freud a identificação é mais primitiva forma de vínculo emocional, é a identificação com o pai que dá ocasião à diferenciação entre id e ego, antes indiferenciados, como reservatório de libido. Tratando dos laços que unem um grupo, nas catexias de objeto, nos investimento de libido entre as partes que compõe o grupo, o psicanalista vê o seu ponto de coesão. Se os laços emocionais são o fundamento da conservação das associações duradouras, por seu turno o conceito de identificação nos oferece oportunidade de responder a segunda pergunta: por que este fundamento não pode ser entendido como relação de interesses. Os interesses devem ser tratados como objetos públicos, forjados segundo acordo entre as partes interessadas. As pessoas envolvidas num acordo de interesses, investem suas energias em objetos e assim que satisfazem seus desejos, retiram desses objetos seus investimentos. É o interesse o objeto da catexia, enquanto na identificação é o próprio ego. Uma vez internalizado o objeto da identificação, é o ego o paciente do investimento libinal (razão pela qual, na melancolia, ele é punido; o superego pune o objeto internalizado já o que o objeto real foi perdido, isto produz o quadro de auto-depreciação comum nos melancólicos). A identificação, como pressuposto para fortalecimento dos grupos, parece ser a peça mais forte na sua estrutura. Não se trata de desprezar as instituições nas quais os interesses comuns tomam forma, as relações jurídicas, políticas, são essenciais ao arcabouço de uma sociedade avançada e complexa. Contudo, a autonomia e eficiência das instituições sociais nos fazem perder de vista os fundamentos da sua constituição e criam ocasiões para disparates semelhantes à idéia de “Responsabilidade social”. O perigo evidente de se perder de vista este lastro emocional consiste na possibilidade de se outorgar a instâncias externas aquilo que deveria ser a costura do tecido social. Portanto, expor a estrutura social a contingência das formas institucionais, políticas e jurídicas de um determinado período histórico. Corremos o risco de concorrer para um tipo elaborado de guerra de todos contra todos pela invenção de uma nova forma de grupo na qual as hostilidades entre os membros são retidas apenas pelo interesse que cada um tem na manutenção do sistema. O risco resta na dissimulação promovida pela prática da Responsabilidade social que nos faz admitir inadvertidamente uma forma semelhante de relação grupal em favor dos benefícios que ela gera. Se quisermos equacionar os problemas materiais humanos não é preciso apelar para bondade dos grandes conglomerados comerciais, mas, tão somente distribuir os infindáveis recursos materiais e intelectuais acumulados até hoje.

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