Em igualdade de condições

E
Algumas idéias cumprem papel importante na manutenção da ordem mental do brasileiro. A crença de que as adversidades impostas pela colonização, os obstáculos que até hoje tentamos contornar e corrigir, não constituem a integridade da herança cultural. Um aspecto positivo, pensam, ainda pode ser divisado. Por miscigenação ou recolhido de étnias das quais o brasileiro quase sempre se orgulha, acreditamo-nos herdeiros de certo jeito para o trato social, dotados de espirituosidade e afetuosidade humana incomum, bondosos, hospitaleiros com quem quer que seja.

Vocês já observaram como essa idéia é cara a grande parte da população?

Essa intuição muito geral é um contrapeso. Frente a discrepância e defasagem fixadas pelo atraso tecnológico e social que podemos, em parte, creditar aos obstáculos historicamente constituídos, a idéia de que somos titulares de uma certa humanidade indisponível mesmo as mais avançadas sociedades é terapêutica. Ela equilibra o jogo e nos torna aptos a seguir em frente, sem maiores transtornos, conservando a inteireza do ego.

É um teoria — bem operativa, pela minha visão. Ela explica, além da postura que encontramos em parte da população, o juízo que se faz do comportamento de outras culturas. Minha cambiante memória guarda lembranças de que Gilberto Freyre já havia notado a peculiaridade do composto que reunia traços mouros, africanos, indígenas, dentre outros, conformando uma mistura característica pela sensualidade, além da convergência de um comportamento de caráter cultural que talvez seja a gênese de uma conduta para a qual abraços, toques, enfim, uma variedade de expressões corporais e gestos, desempenham papel fundamental para demonstração de sentimentos e para sua verificação. Os demais povos, salvo exceções — os italianos, por exemplo, daí talvez nossa afinidade com a Itália — comportam-se de maneira inteiramente diversa e essa diferença não é observada com desinteresse, como quem constata a diferença entre o azul e o amarelo, mas julgada segundo parâmetros oferecidos pela nossa própria conduta. Não se trata apenas de observar diferenças, há um juízo nessa atividade que nos faz pensar que agora elas são relacionadas no domínio da oposição certo/errado ou adequado/inadequado, humano/desumano. Assim, por exemplo, embora os alemães possuam um cultura avançada, uma tradição intelectual e um país apoiado em tecnologia e desenvolvimento, ainda não aprenderam, segundo nossos termos, a expressar seus sentimentos de maneira adequada — essa não é uma sentença, algo articulado num discurso exposto as contigências do verdadeiro e do falso, mas um sentimento, uma intuição que por algum ardil dissolve as diferenças instauradas pelos fatores antes mencionados e nos coloca em pé de igualdade. Não que sejamos de fato diferentes, não acredito nisso. Entretanto, no mundo estreitamente ligado a materialidade, que exige e só reconhece instâncias externas de reconhecimento para os quais estipula prêmios, titulações, e onde toda mensuração válida é objetiva e pública, seria absolutamente previsível que o atraso do Brasil nos fizesse recuar diante de uma outra cultura.

No entanto, não é assim que nos enxergamos. Ombreamos, sem maiores problemas, qualquer bárbaro, porque acreditamos ser, de algum forma, um espécie de nova Israel. Longe de ser uma visão crítica, tomo essa idéia antes como uma visão lúcida que reconhece o papel desse dispositivo para o equilíbrio da nossa vida mental. Reconheço sim, algumas implicações, mas vou deixá-las para outro dia.

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