Engessando o braço torto: política de cotas

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Câmara aprova cotas para universidades federais

O plenário da Câmara dos Deputados aprovou o projeto que cria cotas de 50% das vagas nas Universidades Federais vinculadas ao Ministério da Educação e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio para os estudantes de escolas públicas. Essas vagas serão preenchidas com reservas para negros, pardos e índios na proporção da população de cada Estado, de acordo com o censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dentro dessa cota de 50% , a metade terá de ser preenchida por estudantes de família com renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita.

Não resta dúvida de que sou contra o sistema de cotas nos termos e circunstâncias em que ele se dá. A desigualidade entre ricos e pobres, negros e brancos, estudantes de escolas particulares e de escolas públicas, precisa sim ser combatida, mas combatê-la significa nenhuma outra coisa senão reformar radicalmente o sistema de ensino, investir em educação, em colégios com estrutura física apropriada, em preparação e capacitação de professores, em remuneração adequada, etc. — qualquer outra coisa é mero paliativo, como é o caso das cotas. Combater a desigualdade que se constata na distribuição das diferentes categorias no quadro de estudantes que ingressam na Universidade significa não meramente facilitar a entrada das categorias desfavorecida (negros, índios, estudantes de escola pública, etc.), mas lhes oferecer condições para que possam competir nos mesmos termos que todas as outras categorias. Qualquer outra coisa é discriminação. Os estudantes de escola pública, para tomar uma categoria bem geral, são tão capazes quanto os estudantes de escola particular, mas têm a enorme desvantagem que corresponde ao atraso, ao despreparo e à desorganização que regem o ensino público no país.

O ensino primário e secundário são autômonos em relação ao ensino superior. Eles têm suas próprias metas, embora formem também a totalidade dos conhecimentos necessários para ingressar na Universidade. No entanto, a educação que se realiza neste período não pode se reduzir ao domínio técnico requerido para passar no vestibular. O ensino fundamental não é uma simples etapa num processo de preparação para uma formação profissional. Eu consideraria a possibilidade de um sistema de cotas se ele viesse após uma reforma radical no ensino público que contemplasse os itens que mencionei acima. Antes disso, a política de cotas não é nada além do que o endosso à violência que a educação pública brasileira representa para seus estudantes. Um reforma estrutural, não efetiva. Não acho que precisemos esperar o tempo de maturação de uma nova lavra de estudantes, mas acho que precisamos sim reformar a educação antes de implementar as políticas de cotas a fim de não engessar o braço torto, de não fazer com que as facilidades obtidas mais adiantes nos façam esquecer as dificuldades antes postas. Não tenham dúvidas, quando os números começarem a mudar, quando os negros, estudantes de escola pública, índios, passarem a figurar substancialmente nas estatísticas que aferem a participação universitaria, a possibilidade de uma mudança efetiva na educação pública ficará ainda mais distante. Esqueceremos que os mesmos negros, índios e estudantes de escolas públicas que ora frequentam Universidades foram e continuam sendo vítimas de uma sistema educacional precário, para dizer o mínimo. Se fecharmos os olhos para essa carência, se imaginarmos que o problema se resolve ajustando os critérios de seleção das Universidades, condenaremos a educação básica à miséria vigente, partilhando a visão segundo a qual a educação consiste meramente numa formação técnica — e não humanística, integrada ou holística. Alguns aspectos da educação são incomensuráveis, não se deixam capturar por estatísticas e coisas semelhantes, mas podem ser sentidos no modo como os cidadãos se tratam, entendem as relações intersubjetivas e as funções que desempenham na organização política e cultural do país. Precisamos escolher entre uma estrutura que forma meros profissionais e outra que dá forma a cidadãos, emancipados e integrados à sociedade. A Universidade não forma caráter — talvez até deforme, em certos contextos — , ela já supõe uma formação prévia, sem a qual o domínio técnico perde parte de sua potencialidade, de sua capacidade para servir a sociedade (ou pior, se expõe ao agenciamento de interesses e finalidades estranhos ou contrários ao bem público).

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